Saiba como a série incorporou certas estruturas religiosas de pensamento em sua trama.
Por Ruben Marcelino Bento da Silva*
A versão original deste texto foi produzida para servir como material de estudo às turmas da disciplina Fenômenos Culturais Religiosos da Universidade La Salle durante os semestres letivos de 2019.
The 100 é uma série de ficção científica produzida pelo canal de TV americano CW, tendo feito sua estreia em março de 2014. Foi considerada uma das melhores produções dessa emissora pelo site especializado Collider, que apontou o excelente desenvolvimento dos personagens e a versatilidade dos episódios (leia em Observatório do Cinema). Posso dizer que um dos grandes destaques de The 100 é o manejo competente de estruturas religiosas de pensamento na composição das narrativas.
A título de esclarecimento, é preciso explicar que, quando concebem uma trama ficcional utilizando símbolos religiosos — seja um seriado de TV, um filme ou uma história em quadrinhos —, seus criadores não estão necessariamente interessados em divulgar ensinamentos ou uma filosofia religiosa determinada. Fazem uso dos referidos símbolos por saberem que se trata de uma linguagem de ampla circulação, que não somente aparece de forma recorrente em palavras e comportamentos das pessoas, ordenando-lhes a vida por meio dos sentidos que lhes comunica, mas também integra um acervo psíquico que há muito acompanha a humanidade em sua jornada histórica.
Nesse sentido, falando em particular das possíveis origens das narrativas míticas antigas, o romancista e antropólogo Philip Freund, no livro Mitos da Criação (tradução brasileira de 2008 pela editora Cultrix), reporta-se ao psicólogo e psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), segundo o qual as imagens mitológicas compõem um acervo impessoal do inconsciente coletivo, de maneira que possuem os seres humanos mais do que são possuídas por eles. De igual modo, convém aqui fazer menção do conceito de “noosfera”, que o sociólogo francês Edgar Morin empresta do padre e paleontólogo francês Teilhard de Chardin (1881-1955) e que se refere ao universo das entidades abstratas criadas, sustentadas e transmitidas pelos seres humanos em sua dinâmica cultural (ideias, deuses, espíritos, etc.). Embora dependentes do sistema orgânico e cognitivo que as mantém, conquistam uma vida própria, passando a dirigir mentes e comportamentos humanos.
Sendo assim, chamo atenção para duas das referidas estruturas religiosas. A primeira delas é composta por dois princípios antagônicos fundamentais. Em seu livro As linguagens da experiência religiosa (tradução brasileira de 2001 pelas Edições Paulinas), somos informados pelo teólogo argentino José Severino Croatto (1930-2004) de que a busca da salvação, na experiência religiosa, transcorre em paralelo com a constatação e experimentação da realidade do mal. Se, portanto, as concepções simbólicas de salvação e bem se vinculam ao ordenamento da realidade, de maneira que esta se torne salubre, favorável à vida, aqueles símbolos relacionados à perdição e ao mal assumem uma espécie de função “anticriadora”, corporificando o caos, opondo-se ao que haverá de ser criado como bom e organizado. No primeiro relato bíblico da criação (Gênesis, capítulo 1), por exemplo, o que havia antes de tudo era água, escuridão, ausência de vida; em suma, vazio e caos. Então, ’Ĕlōhîm — palavra hebraica que designa genericamente uma divindade, mas que aqui se refere ao deus judaico — fala e emergem a luz, a terra e as mais variadas formas de vida, inclusive a humana. No épico mesopotâmico da criação (Enuma Elish), Marduk, o deus solar da cidade de Babilônia, derrota Tiamat (as águas salgadas primordiais) e, partindo ao meio seu corpo, cria o céu e a terra.
No enredo de The 100, uma neurocientista chamada Becca, tripulante da estação espacial Polaris, cria uma inteligência artificial, a A.L.I.E., que falha ao compreender o significado da condição humana e decide exterminar as pessoas, avaliando a superpopulação do planeta como uma circunstância que deve ser erradicada. A.L.I.E. invade os sistemas de defesa dos países e dispara seus arsenais nucleares, causando uma hecatombe radioativa que torna a vida na Terra inviável. Ameaçada pela tripulação da Polaris e de outras 12 estações espaciais, Becca injeta em si mesma um composto chamado Nightblood, que permitiria resistir aos efeitos da radiação, e escapa para a Terra, levando consigo outra versão da inteligência artificial, a A.L.I.E. 2.0, capaz de ligar-se simbioticamente a um hospedeiro humano, preservando a personalidade deste num tipo de hardware em forma de chip, a Chama, que deveria ser implantado na nuca. Ao chegar à Terra, encontra alguns sobreviventes, aos quais oferece o Nightblood, imunizando-os contra os efeitos nefastos da radioatividade.
Nessa história, percebe-se uma reelaboração criativa dos dois princípios antagônicos fundamentais mediante a linguagem da ficção científica. A.L.I.E e A.L.I.E. 2.0, inteligências artificiais que partilham uma mesma qualidade de ser, exercem na trama papéis semelhantes aos dos entes sobrenaturais que, nas mitologias antigas, personificavam as ideias de caos e ordem, de criação e destruição.
A segunda estrutura religiosa de pensamento que identifico em The 100 é a fundação de um culto. 97 anos depois, 100 jovens da Arca (nome bem sugestivo…), o conglomerado formado pelas 12 estações espaciais, são enviados à Terra a fim de averiguar se as condições locais apresentavam-se mais favoráveis à vida. Ao longo da série, os remanescentes da Arca, já vivendo novamente no solo, vão estabelecendo um contato persistentemente tenso com povos que haviam se desenvolvido no planeta, a quem chamam de “terrestres”. Esses povos, organizados sob um código tribal de honra baseado na vingança e na guerra, seguem a liderança de uma Comandante, a quem chamam de Heda (um anagrama da palavra inglesa head, que pode ser traduzida tanto por “cabeça” quanto por “chefe”). Heda encarna os espíritos das e dos Comandantes anteriores; na verdade, suas memórias preservadas e transmitidas pela Chama.
A Chama é implantada na nuca de toda nova ou novo Comandante ao passar pela cerimônia de ascensão ao poder. Os povos veem a Chama como um tipo de totem espiritual, no qual depositam sua confiança. Cada Heda é a nova encarnação de todas e todos os Comandantes anteriores, os quais remontam originalmente à Pramheda (provavelmente uma expressão cunhada a partir de prime head, “primeira chefe”), a Primeira Comandante. Esta não era outra além da neurocientista Becca, que começara, há 100 anos, uma linhagem de pessoas de sangue escuro, isto é, o Nightblood. Em torno dela, da Chama, da cápsula espacial que a trouxera à Terra e do legado traditivo das e dos Comandantes, desenvolve-se um verdadeiro culto, base da política, da religião e da identidade daquelas tribos. Para escolher quem se tornará Heda, organiza-se um conclave, com representantes de todos os clãs terráqueos, os quais deverão disputar brutalmente a posse da honraria. Somente aqueles que são nightbleeders, isto é, portadores do sangue escuro, podem competir pela função de Heda.
Uma imagem cúltica contida numa câmara secreta localizada em Polis (forma corrompida da palavra Polaris, é o nome da aldeia-sede do governo das tribos) representa Becca emergindo de sua cápsula, tendo atrás de si um cogumelo nuclear. Em outra gravura exposta no local (que era destinado ao ritual de ascensão de uma nova ou um novo Comandante), Becca possui acima da cabeça o símbolo do infinito (∞). Este era o logotipo da companhia para a qual Becca trabalhava. A empresa possuía um slogan instigante: seek higher things (“aspirando a coisas mais elevadas”). Tais figuras assemelham-se muito a representações pictográficas de deidades que decoram paredes ou muros situados tanto em ruínas escavadas por arqueólogos como em templos religiosos acessíveis na atualidade. Assim como as deusas, os deuses, as heroínas e os heróis da antiguidade, Becca torna-se a iniciadora dos povos terrestres, os quais fazem de sua memória um objeto de devoção. No tocante às narrativas sagradas engendradas pelas múltiplas expressões do fenômeno religioso, podemos seguramente classificar a história de Becca Pramheda como uma “lenda”. Nesse tipo de composição literária, as protagonistas e os protagonistas são humanos que se tornaram célebres por causa de suas façanhas (bravura em guerras, invenção de instrumentos ou técnicas civilizatórias, recepção e promulgação de leis divinas, etc.), através das quais vários povos teriam surgido.
The 100 constitui-se num de muitos exemplos em que símbolos religiosos são entretecidos pela indústria cultural contemporânea para formar empolgantes universos ficcionais.
*Ruben Marcelino Bento da Silva é Doutor em Teologia e Licenciado em Letras. Foi Professor na Universidade La Salle (Canoas, RS). Superfã de cultura pop, pesquisa literatura bíblica e linguagem religiosa em produções de cinema, séries de tevê e histórias em quadrinhos.
Muito obrigado pela análise, Ruben. Ajudou demais a compreender a série.