As origens mitológicas do Homem-Borracha

A presença do mito nas histórias em quadrinhos.

 

 

 

 

 

 

 

Por Ruben Marcelino Bento da Silva*

No princípio, a escuridão, o vazio, o caos. Súbito, a luz e a ordem (e também a vida!). Trata-se não somente de um movimento mediante o qual a matéria do próprio universo obrigatoriamente se (re)configura, mas também de um esquema sociocultural que parece enraizar-se nos lugares mais profundos da história psíquica humana. Aprendemos com Edgar Morin que as realidades natural e social se fazem mediante um diálogo ininterrupto entre a desordem e a ordem. Sem isso, não haveria estabilidade, tampouco criatividade; esta última, portanto, somente será possível onde o risco constante de desarrumar o que se encontra arrumado constitua também uma regra do jogo.

Mas terá o mito, que conta como as coisas passaram da desordem à ordem através de atos espantosos de poderes personalizados, ficado no passado da humanidade? Já se apontou que elementos narrativos próprios do mito permanecem vivos em obras artísticas contemporâneas, por exemplo, na literatura, no cinema e nas histórias em quadrinhos. Destas últimas, quero enfocar um personagem, cuja história de origem, a meu ver, pode ser tomada como ilustração adequada do emprego de aspectos do mito na produção recente de histórias ficcionais: o Homem-Borracha.

Tudo começa com um sujeito chamado Eel. Ele é um dentre vários personagens que estreiam no primeiro número da revista Police Comics, de agosto de 1941, uma publicação da extinta editora Quality Comics. Eel foi uma criação de Jack Cole (1914-1958), um brilhante artista da Pensilvânia, cujo reconhecido talento chamou atenção de Everett M. Arnold, editor da Quality Comics, que o convidou para trabalhar com ele. O trabalho como desenhista de quadrinhos rendeu-lhe também a amizade e a admiração de Will Eisner, a quem substituiu temporariamente como ilustrador de The Spirit quando Eisner foi recrutado pelo exército americano durante a Segunda Guerra Mundial. A incrível imaginação de Cole, aliada à sua formação religiosa — o pai de Cole, DeLace Cole, ensinava na escola dominical da Igreja Metodista em New Castle, cidade natal do artista —, trouxe à luz um dos mais fantásticos super-heróis, o qual, anos mais tarde, ocuparia lugar de destaque entre os mais proeminentes personagens da DC Comics.

Mas quem é Eel? Seu nome completo é Eel O’Brian. Na página 32 da Police Comics, n. 1, vemo-lo, acompanhado de seus comparsas, tentando roubar à noite uma fábrica de produtos químicos, a Crawford Chemical Works. O bando é surpreendido por um segurança, o qual dispara um tiro que atinge Eel. Na fuga, um tambor contendo um ácido desconhecido vira, despejando seu conteúdo sobre o gângster. Abandonado pelos companheiros e sob forte dor provocada pelo ferimento contaminado com o ácido, Eel perambula pelas ruas, atravessa um pântano e, por fim, esgotado, desmaia sobre uma colina. Esses elementos de entrada — ambiente noturno, crime, ferimento, acidente, fuga, traição, abandono — constroem um cenário caótico que servirá de base para a emergência do princípio personalizado que introduzirá a ordem. Chama atenção, porém, que esse princípio personalizado de ordem é forjado a partir da mesma substância de que o caos é feito. Eel é o caos animado e encarnado. Eel virá a ser a ordem personificada. Como a serpente arquetípica na antiguidade, Eel conserva a mesma ambivalência.

É bastante curioso, inclusive, que a palavra inglesa eel, de acordo com o Cambridge Dictionary (on-line), faça referência a “um peixe comprido que se parece com uma serpente” (a long fish that looks like a snake); em outras palavras, uma enguia! Esse animal destaca-se por sua resistência e capacidade de adaptação tanto à água doce como à agua salgada. Uma espécie em particular, a enguia americana, é abundante no rio Delaware, na Pensilvânia. Desse modo, o nome do personagem, seu corpo espichado (que parece ainda mais alongado graças ao terno risca de giz preto e vermelho), o esgueirar-se dele pela escuridão, percorrendo ruas ermas, atravessando um charco, e sua luta contra a ação da segurança pública acentuam a semelhança com a serpente, ou seja, com a carga simbólica  associada a este animal.

Dentre as imagens simbólicas associadas principalmente às representações míticas dos estados de caos e ordem, a serpente, sem dúvida, é das que chama mais atenção, considerando sua ampla repercussão entre as culturas ao redor do globo, em especial no Ocidente, onde se manifesta, por intermédio da tradição judaico-cristã, como encarnação do maligno. Todavia, enquanto símbolo, a serpente sempre foi semanticamente ambígua, ora ligada positivamente ao surgimento do mundo e da vida — como é o caso do deus asteca Quetzalcóatl (cujo nome significa “Serpente Emplumada”), o qual, juntamente com Tezcatlipoca, seu irmão, transforma-se em serpente para criar a terra e os céus a partir do corpo de Tlaltecuhtli, a deusa da terra —, ora vista como força devastadora em batalha contra divindades da criação ou da civilização — segundo consta, por exemplo, no épico babilônico da criação, onde a deusa Tiamat, personificação do oceano primordial, dá à luz onze monstros, três deles em forma de serpentes com chifres, a fim de guerrear contra Marduk, o deus da cidade de Babilônia.

Ressalte-se, ainda, que também na literatura bíblica a serpente destaca-se como elemento teológico ambivalente: tanto pode estar associada ao pecado e à perdição (conforme acontece na história da transgressão do primeiro casal humano, descrita em Gênesis 3) quanto vinculada à cura (no relato sobre a serpente de bronze construída por Moisés, em Números 21,4-9) e à purificação religiosa (quando o profeta Isaías, no Templo de Jerusalém, teve seus lábios “impuros” queimados por uma brasa, trazida até ele por uma espécie de serpente divinizada com seis asas, chamada de “serafim” — do hebraico śārāf, “serpente de fogo” —, a qual integrava um grupo de outras serpentes, situadas acima do deus judaico YHWH; confira Isaías 6).

Um deus (provavelmente Ninurta)  que personifica a ordem cósmica luta contra a serpente caótica (provavelmente Tiamat).  2019 British Museum. Todos os direitos reservados.

Difícil não ver aqui, fervilhando no texto e no traço de Cole, uma mistura fantástica de conhecimentos de mitologia, religião e natureza.

Continuando a história, Eel desperta numa cama e depara-se com um homem trajado como um monge franciscano, vestindo um hábito preto com uma corda ao redor da cintura. O cabelo está cortado à moda da tonsura romana (o topo da cabeça raspado com um fino círculo de cabelo ao redor). Ele não identifica a que ordem religiosa pertence, apenas informa ao hóspede o nome do lugar onde estão: Rest-Haven (isto é, “um refúgio para descanso”), no topo de uma montanha. Eel, de início, pensa ter ouvido heaven (“céu”) em lugar de haven (“refúgio”), mais perplexo que assustado, certo de que o céu definitivamente não poderia ser lugar para ele. O frade o tranquiliza, revelando-lhe que havia despistado os policiais que o procuravam. Quando Eel pergunta por que se arriscara por ele, o religioso conta que algo interiormente lhe dissera que seu hóspede poderia transformar-se num cidadão valoroso, caso lhe fosse dada uma chance. Eel, então, narra ao homem sua história de vida: órfão desde muito cedo, tentou trabalhar, mas ninguém o queria por perto. Desiludido, perdera a fé na humanidade. Mas ali, em Rest-Haven, havia encontrado alguém que o ajudara a ver a vida de outro modo.

Após isso, algo surpreendente acontece: Eel descobre que pode moldar seu corpo da forma que quiser, concluindo que isso, sem dúvida, era efeito do ácido que penetrara em seu organismo por causa do ferimento sofrido na noite anterior. Alguns dias depois, Eel despede-se de seu anfitrião e deixa Rest-Haven resolvido a mudar de vida, usando seus poderes para combater o crime. Transfigurando seu rosto e adotando os famosos óculos e a roupa vermelha, ele dá vida ao Homem-Borracha (o nome Plastic Man foi sugestão de Arnold, tendo em vista o impacto industrial da invenção do plástico sintético no começo do século 20). Aproveitando sua fama de gângster, Eel se infiltra novamente entre seus comparsas e frustra os planos deles, alcançando-os e entregando-os à polícia, representando literalmente os longos (e, no caso dele, emborrachados) braços da lei. Agora, como princípio ordenador, cooperava para a criação (ou restabelecimento do equilíbrio) das condições necessárias à vida em sociedade. Não custa lembrar que, enquanto corporificação de um princípio ordenador, Eel surge do próprio caos mediante a intervenção de agentes que, como nas narrativas míticas, igualmente simbolizam as forças personalizadas responsáveis por dar forma e sentido à realidade: o segurança da fábrica de produtos químicos (fator social), o frade de Rest-Haven e aquilo que fez com que este intuísse o potencial benigno de Eel (fatores mítico-religiosos).

A história de Eel O’Brian, o Homem-Borracha, embora não seja uma produção cultural propriamente mítica, combina certamente marcas simbólicas próprias do mito para oferecer não só divertimento mas também reflexão acerca de valores significativos: Eel — a enguia, a serpente — ensina que, apesar de moralmente ambíguos, seres humanos não precisam abandonar-se numa existência autodestrutiva e sem sentido. Aceitar que se necessita de ajuda é um grande passo. Todavia, não se deve esquecer que a solidariedade é capaz de fazer milagres na vida de uma pessoa. Que o diga Eel O’Brian!

*Ruben Marcelino Bento da Silva é Doutor em Teologia e Licenciado em Letras. Foi Professor na Universidade La Salle (Canoas, RS). Superfã de cultura pop, pesquisa literatura bíblica e linguagem religiosa em produções de cinema, séries de tevê e histórias em quadrinhos.

Sobre Universos Paralelos

O Grupo de Pesquisa Universos Paralelos: Arte Sequencial, Mediação Cultural e práticas pedagógicas tem como proposta aproximar e integrar produções artísticas e culturais de práticas pedagógicas, realizando pesquisas sobre o tema. A perspectiva de educação como mediação cultural, onde a realidade é reproduzida a partir de chaves de leitura pedagógicas, assim o grupo propõe um espaço de discussão, leitura e decodificação de produções e linguagens midiáticas que se fazem onipresentes em nosso cotidiano cultural.
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