But that’s what we do, right? Our best work after the fact? We’re the Avengers? Not the Prevengers, right?
Tony Stark
Por Franklin Brasil dos Santos e Marcus Vinicius de Azevedo Braga*
Não faz muito tempo o país parou. E não foi apenas pelos palpitantes temas da política nacional. Foi para assistir à película que coroou mais de dez anos do chamado Universo Marvel no cinema, com “Vingadores: Ultimato”. Um sucesso de público, o blockbuster, como nos outros filmes da série, traz temas profundos em suas entrelinhas, em especial o trecho inicial, com a fala epigrafada, assim traduzida livremente: “Mas é o que fazemos, certo? Trabalhamos melhor depois do fato? Afinal, somos os Vingadores. Não os ‘Prevenidores’, certo?”
Em tom de desabafo, o Homem de Ferro expõe seu inconformismo com o fracasso de sua tentativa de dotar o planeta de mecanismos permanentes de proteção contra as ameaças que vinham se desenhando no horizonte desde os primeiros episódios da série. Partimos da crise no Universo Marvel para abordar o mundo da gestão dos negócios, públicos e privados, e sua relação com os riscos.
A frustração do herói é um bom ponto de partida para um exercício de reflexão sobre o caráter preventivo dos controles e, ainda, de suas limitações, como complemento necessário também no contexto de ações corretivas e punitivas. O debate merece se aliar aos superpoderes dos custos, de transação e de oportunidade, no ambiente organizacional.
Comecemos, pois, das origens. Toda boa história de herói é assim.
Primeiro, surgem os objetivos. Neste ou em qualquer planeta, seres humanos ou alienígenas, mutantes ou semi-deuses, todos temos planos, projetos, missões. Motivos pelos quais realizamos nossas ações, tentando alcançar as metas que nos propomos atingir. De sonhos a necessidades, fugindo logicamente de um utilitarismo raso, nossas atitudes buscam resultados e geram consequências.
Com grandes objetivos, surgem grandes riscos (com o perdão do plágio, Ben Parker). Eventos incertos, com potencial para interferir no caminho ou no resultado das ações. Possibilidades, cujas probabilidades podem ser estimadas, mas não em uma ressurreição do “Demônio de Laplace”, como proposto em “Capitão América: Soldado Invernal”, com o algoritmo de Arnim Zola que selecionava alvos que poderiam se tornar ameaças para os planos malignos da Hidra.
Para contrabalançar os riscos, existem os chamados controles internos, medidas estruturais que buscam impedir que essas possibilidades se manifestem, e se manifestando, tentam reduzir seus impactos. Poderes de natureza preventiva, detectiva ou corretiva, para evitar que algo aconteça, avisar quando acontece ou reduzir os danos, se acontecer.
Nas películas, os Vingadores detectaram tardiamente a ameaça de Thanos, não tiveram sucesso na estratégia preventiva de dissuasão com a construção de Ultron e se concentraram em ações corretivas na maioria dos filmes, ao ponto de voltar no tempo para tentar desfazer os efeitos nefastos de riscos já concretizados.
Um herói que aparece depois que o vilão cometeu suas maldades, funciona como um controle corretivo. Atua como um “vingador”. Uma dimensão necessária, mas não exclusiva. Corrigir, ajustar, castigar, punir, tem efeitos pedagógicos, são decorrência das limitações de nossa racionalidade, mas apesar do elã heróico dessas ações, elas provocam distorções nos processos, tornando-os mais onerosos, mais lentos ou ainda, infundindo medo no sistema.
Há outros controles menos glamourosos, de natureza detectiva, que buscam identificar e alertar em caso de riscos que se manifestam. Há casos famosos, como os “canários dos mineiros”, os “pedais do homem-morto”, as “rosas das videiras”, controles que monitoram eventos indesejados, que indicam um cenário que se avizinha. Thanos tramou tranquilamente sem que surgissem alertas, red flags que buscassem identificar perigos que se aproximam, mesmo nas visões dos heróis diante das ações da Feiticeira Escarlate ou da existência de um sentido aranha, ou “arrepio do Parker”, como se queira.
Se um desses mecanismos de alerta for acionado, significa que falharam os controles preventivos, insuficientes ou inexistentes. Significa, também, que serão necessários esforços redobrados para corrigir os problemas. Depois que um risco se manifesta, os custos tendem a ser bem maiores, para a correção e para o reajuste do nosso sistema preventivo. Vingar sai mais caro que prevenir. E nem sempre resolve.
Foi isso que Tony Stark, o Homem de Ferro, acabou descobrindo, amargurado com o foco da sua equipe na ação coercitiva, distribuindo tiro, porrada e bomba depois que as catástrofes já se instalaram. E achando que com isso seriam aclamados pela população, por terem salvado o dia. Mas as vítimas colaterais da ação enérgica e irrefletida dos Vingadores, especialmente em Sokovia e depois em Lagos, na Nigéria, apresentam outra perspectiva ao cenário de heroísmo, uma reflexão sobre o propósito do grupo e do contexto no qual se encontravam.
Como o bilionário Stark descobriu ao longo de sua trajetória, num processo de amadurecimento e crescimento pessoal, há um limite para o poder da vingança. Nem tudo pode ser corrigido, restaurado ou recuperado com a força, mesmo quando se tem atributos e recursos em condições excepcionais ou prodigiosas.
E para toda ação, especialmente envolvendo superpoderes, existem consequências, efeitos colaterais, danos imprevistos. Todo controle traz consigo custos de implementação, ônus, camadas, que redundam mais das vezes em ineficiência, desconfiança, medo, novos riscos. No Universo Marvel, surge o acordo de Sokovia como mecanismo de equilíbrio desses poderes, na busca de conter seus abusos. Uma discussão de Accountability entre os heróis se desenrola em “Capitão América: Guerra Civil”, um conflito antagônico, de proporções épicas, sobre a submissão dos Vingadores a controles institucionais da sociedade.
O Homem de Ferro, convencido da grave crise que ele mesmo causou, por ter tentado criar uma arma definitiva, o Ultron, gerando desastres e mortes de inocentes, decide se submeter às regras da ONU (Stark, seu legalista!). Mas o Capitão América, baseado em seu rigoroso código de conduta moral e no medo da instrumentalização dos heróis pelos políticos, acredita que os governos não tomam decisões melhores que os super-heróis, e que estes devem ser livres para agir segundo suas próprias regras, na busca de salvar o mundo como melhor lhes aprouver, na defesa da autonomia destes
Tony Stark entende que mesmo as melhores intenções podem levar a péssimos resultados, quando não há restrições, supervisão e diretrizes claras. Steve Rogers, por sua vez, confia apenas em si mesmo e seus amigos extraordinários, como escudos inquebráveis da verdade e da justiça. Polos de ideias atuais no mundo, sobre as formas de conter o ser humano e seus vilões interiores.
Mas será que essas posições antagônicas são as únicas possíveis? Controle rígido prévio-burocrático ou nenhum controle, na auto regulação? Há caminho alternativo? Combinar controles com incentivos, talvez? Vincular controles ao que pode afetar os objetivos? Mensurar os custos advindos do controle? Confiança com supervisão? Apesar da tecnologia que melhora a detecção e a prevenção, continuamos com a centralidade na heróica correção.
A jornada de Tony Stark no Universo Marvel é particularmente pródiga em exemplos do mundo do controle. O personagem passou por uma complexa trajetória de mudança de atitude mental. De playboy inconsequente a líder responsável. Nos últimos tempos, ele não apenas quer salvar a humanidade, mas começa a pesar os efeitos colaterais de suas decisões. A relação com a equipe vai mudando, de desdém, individualismo e indiferença à liderança, compromisso e pertencimento.
Certamente, esses são super-temas também do cotidiano das organizações. E os custos envolvidos nisso tudo. Para o dono das indústrias Stark, dinheiro não é exatamente um problema. Não há dilemas para o Homem de Ferro em suas decisões sobre onde e em que aplicar seus ilimitados recursos. O Universo Marvel às vezes se assemelha a uma sociedade fora do mundo econômico.
No mundo real, especialmente o mundo dos governos, esse cenário é diferente. As escolhas são marcadas por análises de custos e benefícios. Os controles resultam em medidas que impactam os processos, na ideia dos custos de transação. Investir em um projeto gera desinvestimento ou inviabilidade de outros na ideia do custo de oportunidade. Cada ação demanda esforços de alguns agentes, ganhos e perdas de outros, e a reflexão de Stark é eminentemente sobre os custos que as ações dos Vingadores impõe à sociedade, contraposto ao benefício de salvar o mundo, fazendo ele pensar se não existem formas menos onerosas de salvar esse leite, antes que ele seja derramado.
Detectar, prevenir, corrigir, dimensões da função controle, e que tem seus custos de formas diferente, que precisam ser dosadas de forma equilibrada, de maneira a garantir o atingimento dos objetivos institucionais, proporcionando o maior valor à sociedade, numa reflexão na qual a realidade nos ensina, como ensinou, na ficção, a um redimido Tony Stark.
É uma saga infinita. E sem jóias místicas que resolvam tudo em um estalar de dedos.
* Franklin Brasil dos Santos é mestre em Controladoria e Contabilidade pela FEA/USP (2014); Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutorando em Políticas Públicas pela UFRJ. Os dois são fãs dos Vingadores desde a infância.
Texto primoroso e altamente recomendável. Não pensem como uma crítica e me perdoem antecipadamente, mas nem todos sabem a tradução da palavra “accountability”.