Minha Coisa Favorita é Monstro: sombras e esperança

Emil Ferris 2Minha Coisa Favorita é Monstro é uma narrativa densa. É um mergulho nas sombras para fazer emergir esperança.

A autora (Emil Ferris) contraiu uma doença que paralisou suas pernas e sua mão direita. Com 40 anos, uma filha para criar e nenhum trabalho, ela reaprendeu a desenhar com a mão esquerda. Demorou cinco anos para concluir Minha Coisa Favorita é Monstro, que foi rejeitada por 48 editoras antes de ser lançada pela Fantagraphics nos EUA (agora pela Companhia das Letras no Brasil) e ganhar os principais prêmios dos quadrinhos (Eisner e Angoulême).

A obra terá uma continuação (já publicada lá fora, em breve por aqui) e que é o resultado de uma vida expressa através do desenho. A autora não escreveu um roteiro para sua graphic novel, ela desenhou personagens, cenários, diálogos e texto, e foi construindo a narrativa  de forma orgânica(vale uma nota de apreciação do trabalho de letreiramento da versão em português feita pelo Américo Freiria e a Jessica Freiria).

A protagonista (Karen Reyes) é uma menina de 10 anos que se vê como um monstro (loba), e que exatamente por isso tem a habilidade de perceber e aceitar o grotesco naquilo e naqueles que a rodeiam. Ela desenha num caderno com caneta esferográfica seu diário visual, mostrando sua atração por quadrinhos e filmes de terror, seus problemas na escola, seu irmão e sua mãe.

Karen Reyes é em muitos aspectos Emil Ferris. A infância pobre, o amor pelos monstros, a ascendência hispânica. O cenário da trama é a Chicago de 1968 (cidade natal de Emil) onde seguimos a investigação de Karen sobre a morte de sua vizinha, a senhora Anka Silverberg. O passado de Anka, uma judia que escapou do Holocausto, a visão infantil de Karen sobre seu irmão (Dezê) e sua mãe, se cruzam e transformam a protagonista. Mas a história é mais densa do que parece.

61pgU9sBgNL“A palavra monstro vem do latim monstrum, que quer dizer mostrar. A real é que existe muita coisa que a gente não vê, mas que está bem debaixo do nosso nariz. Quem sabe os monstros também estejam bem debaixo do nosso nariz…”  fala autora de 57 anos pela boca de sua protagonista de 10. Karen com seu sentido sinestésico sente cheiros quando vê obras de arte e enxerga cores quando percebe perfumes. Ela copia à caneta em seu caderno as capas das HQs de terror que ganha de seu irmão e mergulha nos quadros dos museus sempre buscando as sombras, os demônios e as coisas que não são ditas.

A menina em sua inocência infantil (protegida pelo seu irmão, pelo seu colega de escola, pelo mafioso do bairro) não sente repulsa (nojo) pelo diferente (desviante), nem apreensão (medo antecipado, ansiedade). Mas ao longo da narrativa ela vai experimentar o terror de um amor não correspondido e o horror da morte. Ao mesmo tempo a autora nos apresenta um espelho. A história de Anka é cheia de terror e horror até o Holocausto mudar sua atitude frágil perante a vida.

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O quadro A tentação de Madalena de Jacob Jordaens e no traço de Emil Ferris

Num determinado ponto da narrativa, o quadro A tentação de Madalena (1616) serve de porta para Karen começar a desvendar os mistérios na história da sua família e da morte de Anka. O fundo escuro do quadro esconde um rosto deformado, um monstro que a protagonista consegue ver. Ela entra na pintura e tem um diálogo com a sombra, que sem responder nada dá a chave para que aquilo que estava escondido seja revelado. No quadro outra mulher (rotulada de santa e prostituta) – Maria Madalena – segura um crânio que representa a morte dos pecados e a morte física, a transformação e o mistério.

As três – Karen, Anka e Emil – mostram momentos e aspectos da vida das mulheres, que descobrem dores inescapáveis com o amor, a doença e a morte, são expostas à violência masculina e ao julgamento social e superam suas dores abraçando as próprias sombras e as sombras daqueles que as cercam. A esperança que a história de superação da autora inspira é a coragem de mergulhar fundo e se reinventar, ainda que, ou melhor, especialmente diante das maiores e mais terríveis monstruosidades.

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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