O Homem-Aranha rumo ao Absoluto de Kierkegaard.
Há um momento na animação Homem-Aranha: no Aranhaverso no qual Peter Parker fala para Miles Morales que o grande segredo para ser o Homem-Aranha é “levar fé”. Compreendemos o esforço de tradutores em aproximar textos originais em inglês da coloquialidade da língua portuguesa, porém a expressão adotada nesse diálogo fica muito longe do sentido guardado pela expressão original. O que se escuta de Peter Parker, na verdade, é que Miles Morales saberá que é o Homem-Aranha quando der um salto de fé ou, originalmente, a leap of faith.
Salto de fé é um termo cunhado por Sören Kierkegaard para descrever a ruptura a ser realizada com o estado ético a favor do estado religioso. Para Kierkegaard, o estado religioso é aquele no qual a pessoa rompe com as certezas, percebidas como superficiais e passageiras, para abraçar o Absoluto, dimensão que lhe fornece a profundidade da existência e a própria definição de identidade. O Absoluto, no entanto, não oferece garantias ou razões para ser assumido. Ele é o horizonte para o qual se caminha sem nunca chegar, o infinito que convida ao vôo ao mesmo tempo que se revela sem fim. É um salto no escuro. E saltar entre os abismos dos arranha-céus de Nova Iorque sem ter certeza de que não morrerá na queda é algo que caracteriza fortemente o Homem-Aranha.
Kierkegaard é considerado o primeiro filósofo existencialista e, como tal, apostava que o sentido da vida se encontrava naquilo que a vida é e não em idealizações a respeito dela. A Marvel, em si, parece ter uma forte inclinação existencialista. A cronologia bem elaborada desde os tempos de Stan Lee, as camadas dramáticas desenvolvidas nos personagens e a profunda humanização dos super-heróis parecem conversar diretamente com a pauta de filósofos como Kierkegaard. O Homem-Aranha, aliás, é um ótimo exemplo disso e a animação da Sony reforça essas características ao multiplicá-las em diversas versões do personagem original. Miles Morales, prestes a se tornar o mais novo Homem-Aranha nesta história, revela-se irmanado a todos estes outros personagens.
Por isso, quando ele é apresentado, testemunhamos a vida de um adolescente de nossos tempos se desenrolando: o quarto bagunçado, a música alta nos fones de ouvido, a crise da troca de escola e com as figuras de autoridade… Miles, futuro Homem-Aranha de seu universo, é um jovem afro e hispano-descendente de Nova Iorque, cidade que entre outras coisas, testemunha diariamente a atuação de um outro Homem-Aranha combatendo o crime. E a animação se inicia exatamente com o Peter Parker que pensamos conhecer narrando sua origem como super-herói, em um esquema de apresentação que se repetirá intencionalmente cada vez que uma nova versão do Aranha for introduzida. Miles está trocando de escola, deixando amigos e rotinas para trás enquanto busca um sentido em toda essa avalanche de novidades. Oscila sua confiança entre o pai, policial, a mãe, enfermeira, e o tio, um cara legal, que parece entender de tudo que é importante para Miles – grafite, namoro, a vida em si. Pelo menos aparentemente.
O gatilho que aciona o desenrolar da história se dá exatamente quando Miles e seu tio Aaron vão grafitar uma parede nos subterrâneos do Brooklyn. Eles estão, na verdade, embaixo das empresas Alchemax que, entre outras coisas, trabalha com projetos de aprimoramento genético. A empresa utiliza aranhas como cobaias e uma delas acaba picando Miles Morales. Este momento é mostrado na animação de uma forma bastante anticlimática: enquanto o espectador acompanha a aranha e enxerga os efeitos da picada no metabolismo de Miles, ele, por outro lado, ao perceber que foi picado, apenas mata a aranha e se livra de sua carcaça com certo desdém. Os efeitos da picada, porém, logo começam a se manifestar, fazendo com que Miles retorne ao local do grafite no dia seguinte, tentando encontrar a carcaça da aranha. Isso o leva a testemunhar a última batalha do Homem-Aranha de sua realidade. Wilson Fisk, apresentado em um traço que remete diretamente à maneira como Bill Sienkiewicz o retratou na Graphic Novel Amor e Guerra, está trabalhando em um acelerador de partículas que pode destruir boa parte de Nova Iorque. As motivações do vilão são reveladas mais tarde e são bem verossímeis, mas é este plano que acaba desencadeando o encontro dos Homens e Mulheres Aranhas no território de Miles Morales. E aqui há alguns aspectos sobre os quais desejamos chamar atenção.
Quando Miles se encontra com o Peter Parker de sua dimensão, é reconhecido por ele como alguém semelhante devido ao sentido de aranha. “Você é como eu!”, exclama Parker, enquanto o sexto sentido de ambos tilinta em sintonia. O mesmo acontece quando Spider Gwen, Homem-Aranha Noir, Peni Parker e Porco-Aranha entram em cena. Todos eles se reconhecem mutuamente através de sua sensibilidade e não através de seu visual (o discurso de que todos podem ser o Homem-Aranha, repercutido a partir dos funerais de Peter Parker desencadeia uma verdadeira onda de utilização da máscara do herói ou de roupas que lembram seu uniforme entre a população). Neste sentido, podemos considerar que Miles, admirador do Homem-Aranha, buscava aproximar sua vida ao que via e sabia do herói. O incidente com a aranha geneticamente modificada o aproxima radicalmente e pessoalmente deste mesmo herói, que se revela como humano e falível. O desenrolar da trama o insere em uma comunidade heroica que ele nem fazia ideia que existia. E aqui voltamos ao salto de fé.
O processo que transforma Miles Morales em um novo Homem-Aranha pode ser compreendido como um processo religioso, no sentido amplo do termo. A palavra religião possui três significados originais: religar, reler e reeleger. No início da história, Miles está buscando sentidos para o cotidiano, questionando e resistindo a quase tudo que o cerca. Dentre tudo que ocorre em sua vida, apenas seu tio, o grafite e o Homem-Aranha parecem fazer sentido. Ao ser picado pela aranha da Alchemax ele está vivendo um momento de expressão de todas essas coisas, criando um grafite junto ao seu tio. Ele vivia, ali, uma busca por religação.
A picada da Aranha, que pode ser análoga a uma espécie de batismo para o Aranhaverso, o lança em uma espiral de descobertas – algumas delas bem trágicas – que descortinam sentidos e realidades que estavam ocultos em seu cotidiano. Tudo nele está em mudança e, com isso, sua cosmovisão também muda radicalmente. Ele vive, nisso, uma fase de reler tudo aquilo que conhecia.
Ao longo da história, Miles conhece e é reconhecido por uma comunidade. E aqui o esquema de apresentação de cada versão do Aranha, dizendo há quanto tempo atuava como super-herói, como adquiriu seus poderes e se havia perdido alguém importante, ganha todo o sentido: todas essas histórias colocam Miles em comunhão com estas outras versões do herói. Ele é inserido em um grupo com problemas e trajetórias semelhantes, mas para ser reconhecido como um deles, precisará fazer escolhas, ou uma reeleição de projeto de vida. O salto de fé é exatamente isso: é a hora de tomar a grande decisão existencial, deixando que esta mesma decisão se torne o fato central da existência. Existe um Miles Morales antes do Homem-Aranha e outro depois. Miles ainda é o mesmo, porém transfigurado. A customização do uniforme com uma aranha grafitada é um símbolo disso e toda a sequência em que ele, pela primeira vez, atravessa o Brooklyn como Homem-Aranha revelam exatamente isso. Miles finalmente se torna que ele é: não mais uma vítima das circunstâncias, mas o protagonista de sua própria história.
Não podemos desconsiderar neste cenário o peso da representatividade deste personagem. Apresentar um Homem-Aranha negro e hispânico acolhendo heróis imigrantes de outras dimensões tem um peso simbólico bem significativo. Afinal, qual é o salto de fé necessário a essas comunidades historicamente marginalizadas para assumirem o protagonismo de suas narrativas? Se o Homem-Aranha original representava a emergente juventude que começava a mover a contracultura da década de 60, que juventudes representa o Homem-Aranha de Miles Morales? E por que temos resistência em admitir as expressões culturais juvenis afro e latinas vem movendo uma verdadeira revolução artística em escala global? Talvez Miles Morales seja um possível representante destas comunidades que, assumindo todas as suas potencialidades, perdem o medo de contar suas próprias histórias.
Esta, afinal, sempre foi a história do Homem-Aranha!
* Renato Ferreira Machado é Doutor em Teologia e dedica-se à análise do campo simbólico religioso presentes nas seguintes produções artístico-culturais: histórias em quadrinhos de super-heróis, seriados de aventura, fantasia, terror e assemelhados e produções cinematográficas dos mesmos gêneros e cenas musicais underground, como o Punk e Pós-Punk Britânico, Punk e New Wave de Nova Yorque e música de protesto latino-americana.
Texto show de bola, me diverti lendo .
Cara que texto maravilhoso, obrigado por ter escrito.
O melhor texto que já li sobre essa obra, cara. E como grande fã do Aranhaverso, só tenho elogios e agradeço por ter escrito isso, parabéns mesmo.