Nos quadrinhos o perigo é sempre levado a sério. Já no mundo real, nem tanto…
Numa dessas listas nerd de piores vilões eu descobri a Asbestos Lady (Madame Amianto em português). Inimiga do Tocha Humana original criado em 1939 por Carl Burgos (um androide criado pelo cientista Phineas T. Horton que se incendiava em contato com o ar), a vilã foi responsável pela morte dos pais de Thomas “Toro” Raymond, que mais tarde seria o sidekick do Tocha Humana, membro dos Invasores (junto com o Capitão América, Bucky e Namor), durante a segunda Guerra Mundial.
O pai de Toro, o cientista Fred Raymond era assistente de T. Holton e ficou doente por exposição ao amianto. Nos anos 1940 os perigos da exposição ao mineral já eram conhecidos, mas o amianto ainda era muito usado em produtos e na construção civil por ser barato e resistente. Victoria Murdock (a Asbestos Lady criada em 1947 por Mike Sekowski) era uma assaltante de bancos que usava roupas de amianto para se proteger do incêndio que causava para despistar a polícia e fugir. Depois de alguns confrontos com a dupla Tocha Humana e Toro, a Madame Amianto é presa definitivamente. Anos mais tarde ficamos sabendo que ela morreu aos 45 anos de mesotelioma (câncer raro e altamente agressivo diagnosticado em cerca de 3.000 pessoas anualmente nos EUA) causado pela exposição prolongada ao mineral.
Nos Estados Unidos o uso do amianto começou a ser restrito até ser bandido em 1980, mas o primeiro registro ligando o mesotelioma à intoxicação por amianto foi feito em 1963, mesmo ano em que Stan Lee e Dick Ayers criaram mais um vilão na mesma linha – Asbestos Man (Homem Amianto).
O químico Orson Kasloff cria um traje de super-amianto para derrotar o Tocha Humana e ganhar notoriedade no mundo do crime. Evidentemente seus planos não prosperam e ele é derrotado pelo herói. Na saga A Essência do Medo (publicada por aqui em 2012), o vilão reaparece carregando um tanque de oxigênio e tentando voltar à vida de crimes, depois de ter vencido a batalha contra um câncer de pulmão (ainda que tenha ficado com sequelas, como a dificuldade de respirar).
Nas duas histórias os leitores vão aprendendo sobre os perigos do amianto e suas consequências. Associar o uso do mineral aos atos de um vilão e, mais do que isso, mostrar a derrota como consequência não de um ato heroico, mas sim da terrível doença, serviram para formar a opinião dos leitores que passaram a defender as medidas de restrição e banimento do uso do amianto nos Estados Unidos (mesmo daqueles que não foram diretamente afetados).
Enquanto isso no Brasil a Asbestos Lady e o Asbestos Man continuam soltos e praticando crimes, sem que a opinião pública tenha consciência e pressione o poder público. Só em 2017 o Superior Tribunal Federal (STF) baniu o amianto do país. Mas os ritos jurídicos do nosso país são labirínticos e abrem brechas enormes para o descumprimento das leis.
O acórdão (decisão final do órgão colegiado) ainda não foi publicado (o que causa insegurança jurídica já que as mineradoras e as indústrias que usam o minério podem recorrer). A Eternit (fabricante de telhas de amianto) já tem embargos de declaração prontos para serem apresentados assim que o acórdão for publicado para pressionar uma revisão da decisão de 2017. A pressão econômica das mineradoras que exportam o amianto para países com leis socioambientais fracas como Índia, Indonésia e Tailândia juntam-se a projetos de lei como o que foi aprovado na Assembleia Legislativa da Bahia, que libera a extração, a comercialização e o uso de amianto até 2026 (com a justificativa de manter os empregos de quem trabalha na cadeia produtiva desse minério até a troca da tecnologia que substitua o material tóxico).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que todas as variedades de amianto causam câncer e que 50% das mortes por câncer ocupacional (relacionado a atividade profissional) estão associadas à exposição a fibra. Não existe limite de tolerância seguro para a exposição humana. Por aqui a ABREA – Associação Brasileira de Expostos ao Amianto reuniu centenas de vítimas dos efeitos do amianto para lutar pelo banimento do minério. Pena que não contamos com os quadrinhos para nos abrir os olhos para um problema tão sério.
Nota:
Enquanto escrevia esse texto a barragem de Brumadinho rompeu e centenas de pessoas desapareceram (provavelmente morreram) no mar de lama tóxica que se espalhou mais uma vez por Minas Gerais. Em paralelo a esse crime ambiental, estamos no primeiro mês de um novo governo que se elegeu prometendo flexibilizar a legislação em favor do agronegócio e da mineração. Bancos e corporações (como a Vale ou as empreiteiras envolvidas em escândalos de corrupção) que geram emprego e lucro (aumentando o PIB do país), são cruciais especialmente para países afundados em crises econômicas, e por isso impõem regras e se colocam acima das leis.
Não podemos perder a capacidade de enxergar quem são os heróis e quem são os vilões da nossa complexa realidade. Uma tragédia como esta (ainda que seja mais uma entre muitas), é uma oportunidade para despertarmos. Discursos, palavras de ordem e memes lacradores não nos levarão a lugar algum. Todos nós temos que nos responsabilizar pela vida de nossos concidadãos. Essa é em essência a atitude de um verdadeiro herói.
A questão de uma corporação responsável por um acidente foi tratada também na primeira temporada de Manto e Adaga. Na série, a Adaga tenta provar a responsabilidade da Roxxon na explosão de uma plataforma de petróleo quando o pai dela trabalhava lá. A empresa obviamente usa de artinhas para encobrir tudo e ainda culpa o pai da Adaga, sendo que foi ele quem alertou sobre o risco do acidente. É assustador como a ficção e a realidade podem se parecer.
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