Quem era você há um ano? Charlie ou não-Charlie?
Há um ano a sede do jornal Charlie Hebdo (CH) foi alvo de um ataque terrorista que deixou 12 mortos, dentre eles 5 cartunistas, dentre os quais Charb, diretor do jornal. O motivo seriam as charges com imagens do profeta Maomé publicadas, o que é considerado extremamente ofensivo por alguns grupos extremistas islâmicos.
Os atentados geraram uma comoção no mundo e nas redes sociais com o slogan Je suis Charlie, que representava a solidariedade para com as vítimas. Porém, junto com essa solidarização, veio também o slogan Je ne suis pas Charlie, para representar as pessoas que não concordavam com o tipo de conteúdo publicado pelo Charlie Hebdo.
Já escrevi um texto comentando do problema de se ter uma opinião sobre tudo. O mundo globalizado e as redes sociais demandam um engajamento quase imediato. Não importa se seja uma catástrofe natural, incidentes como os da cidade de Mariana, um ataque terrorista ou mesmo a estreia de Star Wars: haverá um slogan, uma hashtag e talvez até a opção de mudar sua foto no perfil do Facebook.
Mas, pense: quantas pessoas sabiam da existência do Charlie Hebdo no dia 6 de janeiro de 2015? E quantas se declararam Charlie ou não-Charlie dia 7 de janeiro de 2015?
Essa comoção e engajamento cego logo produziram um interesse sobre o até então desconhecido jornal e muitos textos de vários “especialistas” vieram à tona. Foram historiadores, sociólogos e até o famigerado ocupante do posto de “especialista em segurança pública”, figura carimbada na imprensa, além dos “formadores de opinião”, aquele cara, tipicamente um jornalista – mas não só – que emite opinião sobre tudo sem entender profundamente de nada. De tudo o que foi produzido, destaco dois textos que mais ou menos sintetizam as duas posições.
O primeiro deles ganhou notoriedade por ter sido publicado no blog do Leonardo Boff, que inicialmente foi creditado a ele, mas cuja autoria não consegui rastrear. Mas menos que o o autor, o que merece destaque são os seus argumentos. O autor do texto diz se solidarizar com as vítimas e ser veementemente contra os atentados, MAS as charges seriam intolerantes e preconceituosas para com os seguidores do islamismo, uma população muito significativa na França, usando e abusando do conceito de “islamofobia”. O autor tenta dar alguns exemplos medíocres, comparando o sistema judicial francês com o brasileiro e o Charlie Hebdo com a Veja, dizendo que, se o jornal tivesse sido condenado em processos anteriores por difamação, o atentado não teria acontecido.

Especialmente para você que achava que a crítica do Charlie Hebdo se limitava aos fundamentalistas islâmicos
Embora com uma argumentação um pouco mais refinada, o raciocínio do autor é simplista e óbvio: se o CH não tivesse publicado as charges consideradas ofensivas por alguns grupos extremistas islâmicos nada disso teria acontecido. Isso me parece o tipo do raciocínio que diz que mulheres que se vestem ou se comportam de determinada maneira pedem para serem estupradas. Ou seja, culpar a vítima pelas ações do agressor.
Muito mais sensato foi Gregório Duvivier. Se julgarmos que algo não deve ser objeto de humor por ser ofensivo, ou que o sagrado não deve ser objeto do humor, simplesmente não há humor, pois tudo é sagrado para alguém. Ou seja, tudo merece exatamente o mesmo respeito e também merece a mesma falta de respeito.
Porém, sem dúvida os atentados ao Charlie Hebdo levantaram novamente a questão dos limites do humor e nesse ponto Duviver também foi certeiro: deve-se rir do opressor e não do oprimido. Na dúvida o oprimido é, em geral, aquele que foi fuzilado.
Para quem quiser pensar um pouco mais e de maneira mais profunda a respeito recomendo o texto de Slavoj Zizek intitulado Pensar o atentado ao Charlie Hebdo e o recentemente publicado no Brasil pela editora Casa da Palavra Carta aos escroques da islamofobia que fazem o jogo dos racistas de autoria de Charb, concluído dois dias antes do atentado.
Nesse pequeno texto o principal argumento de Charb é que se deve lutar contra o racismo, o que significa lutar pela defesa do indivíduo no sentido amplo, e que, ao deslocar a questão do racismo para a islamofobia, substitui-se a defesa do indivíduo pela defesa abstrata de uma religião (e não da liberdade de religião ou de culto, princípios do Estado Democrático de Direito).
E quais foram os resultados do atentado?
Em abril do ano passado o cartunista Luz, o principal a trabalhar no Charlie Hebdo e que desenhou a célebre capa do primeiro número do periódico pós-atentado, declarou que não faria mais charges de Maomé e em julho, o Laurent Sourisseau, editor do periódico, anunciou que o jornal também não as publicaria mais. Sua declaração:
“Desenhamos Maomé para defender o direito de que se pode desenhar o que se quiser. É estranho: esperam que exerçamos uma liberdade de expressão que ninguém ousa exercer” (…) Fizemos nosso trabalho. Defendemos o direito à caricatura”.
Recomendo também o programa Roda Viva, acima, no qual Sourisseau foi entrevistado e que, apesar da maioria das perguntas cretinas feitas pelos entrevistadores, foi bem interessante para entender o quão diferente é a questão do humor e da liberdade de expressão no Brasil e na França.
Nas palavras de Charb, no livro já citado:
“Quando se cede a uma extrema minoria que só representa a si mesma, reconhece-se sua autoridade. Esses radicais confiscaram a palavra do islamismo e todo mundo dá a entender que eles têm razão”.
Se você era Charlie ou não, pouco importa. Efetivamente o mundo perdeu um espaço de exercício de liberdade. O limite do humor foi dado pelo opressor. Simples e triste assim.
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