Parece que nunca tivemos tantas referências. Elas estão em todos os lugares, seja em um easter egg, seja em uma fala, em algum objeto ao fundo de uma cena ou quadrinho. Mas o que são referências?
Em um post antigo eu comentei sobre referência e formação de público. Para quem quiser ler o post está aqui. Resumindo, hoje estamos saturados de histórias, tão saturados que muitos argumentam que não é possível mais contar uma nova história, mas contar a mesma história de maneira diferente.
Se isso é verdade então Planetary, de Warren Ellis e John Cassaday pode ser considerada a obra definitiva dos quadrinhos no século XX (embora tenha sido concluída no século XXI). Dissecamos esse quadrinho no vídeo abaixo:
Em Planetary as referências são inúmeras. Você verá ao longo desse post algumas capas dessa obra-prima e algumas de suas referências.
Então o que torna Planetary único não é o que ele traz de novo, mas o modo como ele organiza e ordena a história da cultura pop num todo coerente– ao menos no que diz respeito ao universo dos quadrinhos mainstream dos Estados Unidos. Ou seja, a quantidade absurda de referências que traz. Mas o que é uma referência?
A palavra referência vem do latim REFERRE, que deriva de RE – “de volta” e FERRE “portar, levar”, ou seja, referência é “levar de volta”. Uma referência então é aquilo que traz você de volta a algo previamente já conhecido, que remete a algo já conhecido.
Talvez em um dado momento da história fosse possível em algum campo do conhecimento ou da arte conhecer TUDO o que foi produzido (exatamente porque era pouco ou por um acesso mais restrito). Então quando alguém em um campo fazia referência a alguma coisa, todos os especialistas daquele campo sabiam o que se queria dizer. Isso não é mais verdade hoje, onde tanto a produção quanto o acesso a ela aumentaram. Um especialista – por melhor que seja – é incapaz de saber absolutamente tudo dentro do seu campo de atuação (lembrando uma derivação da Lei de Murphy: um especialista é alguém que sabe cada vez mais sobre cada vez menos até que saiba tudo sobre nada).
Na cultura pop isso é mais verdade do que nunca. Por mais quadrinhos que você leia, séries e filmes que você assista, jamais lerá e assistirá tudo. Portanto, toda vez que você não tiver uma determinada referência – o que é cada vez mais comum nos dias de hoje – terá a sensação de que o autor criou algo novo. Em outras palavras: é a falta da referência que cria a ilusão da novidade.
Isso significa que apenas quem domina todas as referências será capaz de entender Planetary? De maneira nenhuma. O pensador Gottlob Frege contribuiu enormemente para a filosofia da linguagem e um de seus artigos mais conhecido é justamente intitulado Sobre o sentido e a referência. Claro que não tenho a pretensão de resumir algo tão complexo nesse post, mas espero que seja absolvido por essa ressalva.
A referência de um determinado objeto é aquilo que ele indica. O sentido desse objeto é o que ele significa quando não há objeto a ser indicado. Complicado? Nem tanto, ao menos para os fins desse post. Dito de outra forma: não é porque você não tem a referência que uma obra perde o sentido. É possível ter sentido sem referência.
Ou seja, Planetary é uma excelente história, mas será melhor ainda se você tiver as referências. Nela, os personagens principais são conhecidos como Arqueólogos do Impossível, tentando descobrir a história secreta do século XX. Ellis e Cassaday referenciam essa história, ou seja, tentam nos levar de volta a ela, vão mostrando as camadas que existem por baixo do que é produzido hoje – exatamente como um arqueólogo ao escavar. Exatamente quando um mágico revela seu truque.
Em Planetary, Elijah Snow diz “É um mundo estranho, vamos mantê-lo desse jeito”. Ao escancarar suas referências, Ellis e Cassaday nos abrem as portas de outros mundos que talvez nos fossem desconhecidos até então. Mundos que estavam ali, talvez ignorados e esses mundos formam o mundo que conhecemos – o mundo da cultura pop, com seus heróis, super-heróis e afins.
PS1: O que me faz lembrar de um episódio de House em que ele trata um mágico e os dois discutem sobre a importância de saber ou não como acontece um truque de mágica. O mágico recusa-se a contar o segredo de seu truque, e, em seguida, House mostra suas incríveis habilidades dedutivas – que parecem quase divinatórias – e explica exatamente como conseguiu, por meio da observação, cada uma das informações.
– Era mais legal antes de você explicar – diz o mágico.
– Não teria a mínima importância até que eu explicasse. – argumenta House.
Ou algo parecido.
PS2: Se você curte quadrinhos e está interessado em conhecer um pouco mais sobre “a história secreta do século XX”, fica aqui nosso convite para o curso Quadrinhos na História. Abaixo um vídeo que conta um pouco do que vamos abordar. Você pode fazer sua inscrição clicando aqui.
Planetary é muito bacana mesmo! Muitas referências não só aos quadrinhos, como também à literatura de ficção científica, pulps, filmes de monstros da década de 1950 e por aí vai. Acho que é uma coisa bem britânica mesmo, de quem leu H.G. Wells para provas de literatura da escola e assistiu antigas temporadas do Doctor Who.
Planetary e Liga Extraordinária devem muito ao Wold Newton de Philip José Farmer
http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/mitografia-sequencial-fabulacao-pastiche-e-o-universo-de-wold-newton-nos-quadrinhos-americanos-das-ultimas-cinco-decadas-sean-lee-levin/
Um podcast interessante:
http://iradex.net/17892/planetary-e-a-historia-secreta-do-seculo-xx-hq-sem-roteiro-podcast
Mais um podcast http://www.universohq.com/podcast/confins-do-universo-099-o-estranho-mundo-de-planetary/