Todas as referências históricas e políticas da trilogia original de Star Wars e Andor. Ou quase.
Desde de quando surgiu, Star Wars aborda os medos de uma classe média americana. Mas não é qualquer medo, mas um amálgama daqueles receios que povoaram a mentalidade de produtores e roteiristas desde o lançamento do episódio IV em 1977. Se fosse possível resumir assim, Andor traz uma simulação (otimista e infundada) do que faria aquela sociedade, monoteísta, herdeira do Iluminismo e do pensamento Liberal, quando subjugada pelo fanatismo totalitário.
Afim de evitar analogias explícitas, não surpreende que as alusões políticas de Star Wars voltem-se à 2a Guerra Mundial na maioria das vezes. Os uniformes imperiais, os conceitos de “república”, “senado”, “rebeldia”, têm nítido parentesco com o contexto político e cultural que levaram ao conflito entre o Eixo e os Aliados.
Bom ou ruim, cada filme ou série de Star Wars concebeu realidades “exóticas”, romantizou revoluções e idealizou a rebeldia. Mostrou quais decisões podem se apresentar diante das encruzilhadas da opressão. E raramente algum personagem da franquia abdicou de ir à luta. Trata-se de “star wars” e não “star debates”, afinal.
Mas convenhamos, qualquer conversa de um latino-americano com os pais ou avós que passaram pelas ditaduras têm mais nuances do que cada episódio de Andor. Por isso, talvez, tudo ali pareça um tanto ingênuo. Mas vá lá, Andor ainda é melhor do que qualquer obra de Star Wars desde o Retorno de Jedi.
Uma vez que Tony Gilroy mostrou que não é nenhum mentecapto como roteirista, vale fazer um exercício do que ele pode ter pensado quando bolou o enredo. Ou também, vale tapar os buracos que ele nem sequer tenha considerado. Aqui faz-se um exercício de analogias que talvez tenham inspirado (ou não) os roteiristas da série.
A Força
Os Jedi eram uma seita que recrutou crianças por milênios para uma guerra sem fim entre conceitos abstratos de “luz” e “sombra”. Pela segunda vez (a primeira foi Rey), Andor traz outros usuários da Força com sentido diverso, como a curandeira, quiroprata amadora da Força.

Ali fica claro que existe um potencial revolucionário sobre como empregar as energias que unem a galáxia. Porém, de todas as possibilidades, a Força se tornou conhecida e institucionalizada apenas como um instrumento bélico. O equivalente seria o emprego de antibióticos usados como arma química ou a energia nuclear usada apenas como fator dissuasor em guerras.
Os rebeldes
Com a extinção dos Jedi, o Império ocupou o espaço com sua frota e exércitos, convertendo a República numa ditadura totalitária. Em oposição a isso, os sonhos, métodos e objetivos dos rebeldes oscilam entre diferentes facções. Vale tentar traçar paralelos sobre quem podem ter sido as inspirações desses personagens.
Saw Gerrera = Sergey Nechayev

Não, nada de Che Guevara. Saw Gerrera não mostrou qualquer inclinação reformista além da própria violência. Semelhante a ele é Sergey Nechayev (1847–1882), um revolucionário russo radical, símbolo do niilismo político. Defendia que a revolução exigia dedicação total, desprezo pela moral tradicional e o uso irrestrito da violência. Autor do “Catecismo do Revolucionário”, pregava a submissão absoluta do indivíduo à causa. Fundou um grupo secreto, mandou assassinar um colega considerado traidor e fugiu para a Suíça, onde rompeu com o famoso anarquista Bakunin por seus métodos extremos. Capturado em 1872, foi condenado à prisão na Fortaleza de Pedro e Paulo, em São Petersburgo, onde morreu em 1882. Sua figura influenciou tanto movimentos revolucionários quanto obras literárias, como Os Demônios, de Dostoiévski.
Resistência de Ghorman = Maquis

Esta semelhança já foi apontada por vários comentários online, inclusive no nosso podcast (links acima). Assim como a resistência subterrânea de Ghorman, os maquis foram grupos de guerrilheiros da resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial que lutaram contra a ocupação nazista e o governo de Vichy, atuando em áreas rurais e montanhosas. Formados por jovens que fugiam do serviço obrigatório e opositores do regime, realizaram sabotagens e emboscadas essenciais para a libertação da França em 1944. Embora organizados em grupos autônomos, figuras como Jean Moulin, Georges Guingouin, Henri Frenay e Henri Rol-Tanguy foram líderes importantes que ajudaram a unificar e coordenar a resistência, tornando os maquis um símbolo da luta contra a opressão nazista.
Bail Organa = Philipp Scheidemann

Legalista exemplar, Bail Organa, um vulto reverenciado por Leia e apresentado nas prequels, parece ser o “pai” da Aliança Rebelde. A austeridade e respeito que a ele são dedicados lembram a figura de Philipp Scheidemann (1865–1939), político alemão social-democrata, conhecido principalmente por proclamar a República de Weimar em novembro de 1918, durante a Revolução Alemã que marcou o fim do Império Alemão e da monarquia de Guilherme II. Como membro do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), Scheidemann teve papel central na transição para a república parlamentar, atuando como chanceler da Alemanha entre 1919 e 1920. Sua carreira foi marcada pelo compromisso com a democracia parlamentar e reformas sociais, embora tenha enfrentado grande oposição tanto da extrema direita quanto dos comunistas radicais. Exilou-se na Dinamarca em 1933 após a ascensão do nazismo e morreu em 1939.
Mon Mothma = Rosa Luxemburgo

Coadjuvante decisiva desde O Retorno de Jedi, Mon Mothma é considerada uma das maiores líderes da Aliança Rebelde. A semelhança com Luxemburgo é evidente. Rosa Luxemburgo (1871–1919) foi uma filósofa, economista, teórica marxista e revolucionária polonesa naturalizada alemã, uma das figuras mais importantes do socialismo e do comunismo no início do século XX. Ativa no movimento operário da Alemanha, foi crítica tanto do capitalismo quanto das posturas reformistas do Partido Social-Democrata Alemão (SPD). Defendia a revolução socialista democrática, baseada na ação consciente da classe trabalhadora, e se opôs à participação dos social-democratas na Primeira Guerra Mundial. Junto com Karl Liebknecht, fundou a Liga Spartakus e depois o Partido Comunista da Alemanha (KPD). Participou da Revolução Alemã de 1918-1919, buscando instaurar uma república socialista. Foi brutalmente assassinada em 15 de janeiro de 1919 por grupos paramilitares a serviço do governo, tornando-se símbolo da luta revolucionária e da resistência contra o autoritarismo, tanto capitalista quanto burocrático.
Luthen = Josip Broz Tito + Walter Benjamin

Luthen é um dos melhores personagens já criados em Star Wars. Veterano de guerra, pai adotivo, articulador da Aliança Rebelde, talvez tenha um equivalente da vida real mas que jamais saberemos quem foi. Aqui, vale mesclar em dois sujeitos: Josip Broz Tito (1892–1980), líder comunista iugoslavo que se destacou como comandante da resistência antifascista durante a Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, como chefe de Estado da Iugoslávia. De origem operária e ex-soldado do exército austro-húngaro na Primeira Guerra, Tito aderiu ao comunismo após ser prisioneiro na Rússia e testemunhar a Revolução de 1917. Durante os anos 1920 e 1930, atuou na clandestinidade usando várias identidades falsas, organizando células comunistas e enfrentando tanto a monarquia iugoslava quanto regimes fascistas. Durante a Segunda Guerra, liderou os partisans iugoslavos, o maior movimento de resistência da Europa ocupada, e após a guerra tornou-se presidente da Iugoslávia, implantando um modelo socialista independente da União Soviética, desafiando Stalin e tornando-se uma das figuras-chave do movimento dos Países Não Alinhados.
Outro que tem algumas semelhanças com o Luthen é Walter Benjamin (1892–1940), filósofo, crítico literário e ensaísta alemão de origem judaica, associado ao marxismo e à Escola de Frankfurt. Suas obras exploram temas como estética, cultura, história e crítica social, articulando marxismo, judaísmo e teoria crítica. Perseguido pelo regime nazista, fugiu da Alemanha e viveu exilado na França. Semelhante à Luthen, tentando escapar pela fronteira com a Espanha, temendo ser capturado e deportado para a Alemanha, cometeu suicídio em 1940. Sua obra, incluindo textos como A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica e Teses sobre o conceito de história, se tornou fundamental para os estudos de cultura, filosofia e crítica social no século XX.
Jedis e a “Velha República”
Sejam quem forem as inspirações, revolucionários, radicais, reformistas e terroristas que aparecem em Andor, nenhum deles parece se opor à restauração da “Velha República” sustentada pela Ordem Jedi. Ao contrário, tudo leva a crer que eles são nostálgicos daquele tronco místico/bélico de sustentação do velho Estado.
Na concepção original de George Lucas, o enredo de Star Wars era uma mistura de Jidaigeki (idealização da Idade Média feudal japonesa), filmetes de Flash Gordon ( contos de fadas de príncipes e princesas no espaço) e a guerra do Vietnã projetados em algum futuro distante em que viagens espaciais são reais. Jidaigeki e Flash Gordon são contos de fadas ao estilo Disney: idealizam o passado diluindo as contradições, as desigualdades, as tensões sociais da Idade Média.
As versões da Disney dos contos de fadas, como Branca de Neve e Cinderela, cimentaram no imaginário popular a concepção de que a sociedade estamental, formada por cavaleiros, nobres, clérigos, plebeus e servos, era boa e justa.
É algo como o Velho Sul, idealizado em E o Vento Levou. A ordem social é apresentada como harmônica, natural, ética, e cada membro vive feliz em seus papéis. A Guerra de Secessão é uma perturbação catastrófica dessa ordem.
O revisionismo
Em um salto narrativo arrojado, o Episódio 8 – Os Últimos Jedi, revela que Luke está ciente da relação problemática entre a Ordem Jedi e a sustentação da República. Ele aprendeu com o passado do pai que a concentração excessiva de poder, atrelada a qualquer espectro político, leva fatalmente ao abuso.
É esta a razão básica que leva ele a se abster das tensões galácticas por décadas. O que ele devia fazer? Assassinar o próprio sobrinho para impedir um ou outro “partido” no governo? Explodir novas “Estrelas da Morte”? Caminhos violentos só levam a novas guerras. Recusando um utilitarismo radical, ele toma uma decisão moral: não matar, não se envolver, não tomar partido. E sentencia: a Ordem Jedi deve morrer.
Leal à própria decisão, Luke opta pela única via possível: a reclusão e uma frugalidade minimalista. A analogia é evidente. Luke virou a versão de Star Wars do saudoso José Mujica, ex-combatente do Tupac Amaru, preso, torturado e depois presidente do Uruguai.

No enredo de Andor essa sobriedade é ausente. Por que? Em grande parte porque as sociedades da galáxia estão sendo esmagadas pelas ações do Império. Delinear projetos políticos, governos ou como deveria ser a sociedade uma vez derrubado o Império é impossível. Como apontado no manifesto de Nemik, personagem da 1a temporada, o poder do império se sustenta pelo número incontável de atrocidades. Assimilar o peso de cada uma é impossível. Diante de tragédias, amedrontadas, as pessoas ficam imobilizadas. É a dessensibilização da violência descrita no ensaio Sobre Fotografia (1977) e Diante da Dor dos Outros (2003), de Susan Sontag. Ali ela discute como a repetição e a exposição às imagens de sofrimento podem levar à um tipo de impotência diante da violência, um efeito da Medusa diante da devastação.
Este é o ônus de Star Wars e que Andor é um dos melhores exemplos. Embora a mensagem seja “anti-guerra”, a forma para a apresentar é apologética da guerra. Recusar o conflito é negar as tragédias e, portanto, o drama narrativo.
Andor é uma simulação dos medos americanos. E arcar com as responsabilidades de cada decisão, até de recusar a guerra, é aterrorizante.
PS – Até hoje persiste um nó de enredo que não faz qualquer sentido nas prequels. Darth Sidious mandou criar o exército dos clones. Os Jedi investigaram e descobrem que algo não cheirava bem. Supostamente um Jedi foi o ordenador de despesas da compra do exército. Aí em Geonosis é descoberto que tem um exército de robôs sendo construídos. Acuados, os Jedi acionaram o exército suspeito. Uma vez que a guerra começou, ninguém mais se deu ao trabalho de continuar as investigações? Não existe um Tribunal de Contas, uma Procuradoria Geral da República para verificar possíveis crimes? Os Jedi simplesmente abandonaram as suspeitas sobre a criação do exército de clones? Se alguém souber responder, venha publicar seu texto.





