Filmes e séries sobre o dia a dia de policiais são produtos de um gênero longevo no cinema e na televisão norte-americana, que marcou e mudou a percepção do público em relação aos policiais ao longo do século XX – e agora no século XXI enfrenta novo desafios.
Em 1890 o senado do estado de Nova Iorque apresentou um relatório com mais de 10 mil páginas, da Comissão Lexow sobre corrupção policial, que concluiu que as ações dos policiais majoritariamente assediavam e estorquiam dinheiro dos cidadãos ao invés de protegê-los. Esse relatório foi responsável por reformas que ao longo dos 30 anos seguintes foram implementadas na polícia do estado. O jovem comissário de polícia e futuro presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, fez seu nome como um reformista nesse período. Em 1920 a Lei Seca (que durou até 1933) levou à uma nova onda de corrupção policial que marcou toda a primeira metade do século XX. Na ficção, os Keystone Cops (policiais incompetentes e atrapalhados), e os detetives particulares corruptos dos filmes noir faziam sucesso com o público e reforçavam a percepção popular de desconfiança em relação ao trabalho e ao papel da polícia.

Do ridículo ao heróico – Keystone Cops e Dragnet
A mudança de perspectiva veio em 1951 com a série de TV Dragnet, que tinha como protagonista o detetive Joe Friday da polícia de Los Angeles (LAPD). O personagem interpretado pelo ator, roteirista e produtor Jack Webb, vivia os perigos e heroísmos da profissão, com roteiros previamente aprovados (e portanto muitas vezes censurados e modificados) pelo departamento de polícia de Los Angeles. Em razão do imaginário do pós-guerra, com muitos veteranos atuando como policiais, e por causa das relações entre a indústria do entretenimento e a polícia (que acobertava os escândalos dos atores e atrizes dos grandes estúdios), a representação do policial na cultura de massa se inverteu. Segundo Roger Sabin, no livro Cop Shows – A Critical History of Police Dramas on Television, a força policial passou a ser representada como um “estabilizador” da sociedade, composta de homens honestos e dedicados a manter os bandidos “no seu lugar”. Não por acaso, a série de TV The Untochables (Os Intocáveis) de 1959, reescreve a percepção do público sobre os tempos da Lei Seca, dessa vez com policiais incorruptíveis como heróis.
Em setembro de 1993 estreou na TV aberta (canal CBS), a série NYPD Blue (Nova York Contra o Crime, aqui no Brasil), com muitas críticas da imprensa e perseguição de grupos religiosos. Os roteiristas, produtores e diretores Steven Bochco e David Milch criaram um cop show recheado de xingamentos, nudez, sexo, abuso de entorpecentes lícitos e ilícitos, violência explosiva, racismo, corrupção policial, sexismo, misoginia, homofobia etc. O sucesso inicial da série catapultou 12 temporadas de histórias (a série encerrou em 2005), que testemunharam muitas mudanças técnicas como a introdução de computadores, telefones celulares, exames de DNA, e de mentalidade, como as consequências dos atentados de 11 de setembro.
O personagem principal da série, o detetive Andy Sipowicz (interpretado pelo ator Dennis Franz), um descendente de poloneses, racista, alcoólatra, negligente, violento e corporativista, é a síntese das críticas que a série faz à força policial. O “heroísmo” do personagem aparece nas brechas de suas contradições. Ao mesmo tempo em que ele é incorruptível e fecha o olho para pequenas corrupções que favorece outros policiais, é implacável e violento com os suspeitos de crimes na sala de interrogatório e omite detalhes dos relatórios para não implicar pessoas “boas que fizeram uma coisa errada” (no seu entendimento), tem ódio da corregedoria que investiga os erros dos policiais mas investiga ele mesmo o passado de policiais que o perseguem ou dificultam o seu trabalho para chantageá-los.
Apesar das contradições, ao longo de 12 anos, o arco narrativo de Sipowicz é de redenção. Ele aprende a controlar o alcoolismo, se reconcilia com o filho e com a paternidade, reflete sobre sua atitude racista, passa a trabalhar em conjunto com a corregedoria e, finalmente, sai da posição de um subalterno em conflito constante com a chefia, para a posição de um intermediário que precisa balancear a relação entre o comando e os policiais e detetives do seu esquadrão. Em parte essa visão positiva a respeito de um pernonagem principal tão contraditório é influenciada pela presença do consultor, co-roteirista e produtor Bill Clark, um ex-detetive de NY. Em parte é consequência do alcoolismo e da forma caótica de trabalho do criador da série, David Milch, que deixou a série no 7º ano, abrindo espaço para histórias menos sombrias. E por fim, é em parte consequência do ataque às Torre Gêmeas em setembro de 2001.

Segundo episódio da 9ª temporada (Danny Boy), em novembro de 2001
O 11 de Setembro atrasou a estreia da 9ª temporada da série (que só foi ao ar em novembro daquele ano). Boa parte das principais séries de TV que se passavam em Nova Iorque optaram por não abordar os atentados terroristas nas temporadas que se seguiram a um dos maiores traumas da nação estadunidense (caso da série Friends, por exemplo). NYPD Blue abriu a 9ª temporada com uma mensagem que homenageava os policiais e bombeiros que morreram, e ao longo de quase todos os episódios foram feitas menções sobre os atentados, mostrou-se o preconceito contra personagens de origem árabe ou de religião muçulmana, as fraudes envolvendo a dificuldade de se identificar os mortos nos escombros das Torres e a paranoia com a possibilidade de novos ataques.
A redenção de Sipowicz é também a percepção das forças policiais como heróis no pós 11 de Setembro. Os valores contraditórios do personagem são resgatados para simbolizar um retorno de um heroísmo do passado. O alcoólatra torturado pelo passado no Vietnã das primeiras temporadas, se redime quando a nação precisa restaurar os valores idealizados de um passado mítico para curar as feridas de um novo trauma.
Anos depois, a militarização das forças policiais (mais uma consequência do 11 de Setembro) escancarou o racismo estrutural, como no caso de George Floyd e tantos outros, e séries como Brooklin 99 passaram por revisões em seus roteiros para que esse tema e as críticas da sociedade em relação à polícia pudessem ganhar voz nas histórias. Propostas de cortes no orçamento dos departamentos de polícia e debates sobre as leis de guerra às drogas levaram alguns estados a legalizarem a maconha e ao encarceramento em massa, redefinindo a percepção que a opinião pública tem de suas forças policiais.
Curiosidades
A série foi marcada por vários problemas com o elenco, que acabaram direcionando as histórias para caminhos imprevistos. A mais famosa delas é a saída do ator David Caruso, ao final da primeira temporada. A intensão dos roteiristas era de que o personagem de Caruso, o detetive John Kelly, fosse o personagem principal da série que carregaria a narrativa ao longo das temporadas. Com a saída dele, e os muitos prêmios Emmy que o ator Dennis Franz ganhou pelo papel de Andy Sipowicz, o foco da série mudou.
A já citada instabilidade de David Milch levou o ator Jimmy Smits (que interpreta o parceiro de Sipowicz, Bobby Simone, desde a segunda temporada), a anunciar sua saída da série. Na sexta temporada o personagem passa por um longo problema cardíaco e morre. A quinta e a sexta temporadas são bastante difíceis para Sipowicz (sua esposa morre baleada no final da sexta temporada). O personagem aparece tendo sonhos angustiantes, visões, choros catárticos. Na sétima temporada David Milch deixa a série.
Ao longo de toda a série o espaço da delegacia é palco para muitos dos diálogos íntimos entre os personagens (seja de consolidação de laços de amizade ou de brigas inflamadas), especialmente o banheiro/vestiário. A cenografia criou um espaço sujo, mal iluminado, com mictórios manchados, armários velhos, sem papel toalha (os detetives enxugam as mãos com um rolo da papel higiênico que fica em cima da caixa onde deveria estar o papel toalha). Muitas conversas acontecem quando os personagens estão usando o mictório ou o vaso sanitário. Quase todo episódio tem cenas nesse lugar. É possível interpretar isso como uma metáfora sobre o papel dos policiais na sociedade, sempre em contato com o que é sujo (a morte, o sangue), impedindo que o esgoto transborde para a superfície.
Do banheiro, eu destaco duas cenas. Da sexta temporada, episódio 8 (Raging Bulls), quando o chefe Arthur Fancy e Sipowicz vão até o banheiro depois de uma discussão sobre se a ação de um policial era justificada ou era motivada pelo racismo. Os dois trocam socos até um terceiro policial interferir e separar a briga. E da décima temporada, episódio 9 (Half-Ashed), a viúva de um polícial que trabalhou naquela delegacia quer atender ao último desejo do seu marido e deixar metade das cinzas do morto alí. Depois do departamento negar, Sipowicz conversa com o pedreiro que está cimentando um buraco no chão do banheiro, para que as cinzas sejam colocadas junto com o cimento.
Muito atores e atrizes fizeram pequenos papeis em NYPD Blue. Como cada episódio apresentava dois ou mais crimes, com interrogatórios de suspeitos, a lista é longa. Destaco aqui atores e atrizes que se tornaram grandes nomes em outras séries anos depois: Daniel Dale Kim (Lost), Kerry Washington (Scandal), Luci Liu (Elementary), Nick Offerman (Parks and Recriation), John Wesley Shipp (The Flash), Ana Gunn, Giancarlo Esposito e Aaron Paul (Breaking Bad), Mahershala Ali (True Detective), Sterling K. Brown (This is Us), David Schwimmer (Friends) e Pedro Pascal (O Mandaloriano), entre outros.
Legado
O formato da série (com muitas cenas externas, algumas filmadas mesmo em Nova Iorque), uma câmera sempre em movimento e cortes constantes (que dão uma sensação de velocidade e imprevisibilidade), além das cenas explicitas de nudez e violência, e a abordagem muitas vezes aprofundada de temas diversos como câncer de prostata, gravidez na adolescência, abuso sexual, precariedade das proteções trabalhistas dos policiais, alcoolismo, suicídio de policiais etc., influenciaram muito as produções do gênero. Apesar de NYPD Blue ter revolucionado o que era feito na TV aberta, que de fato precisava de uma mudança por causa da concorrência das produções da TV à cabo, seu legado marcou séries da TV fechada como The Wire (2002-2006) e The Shield (2002-2008), e da TV aberta com 24 (2001-2009) e as várias C. S. I., entre muitas outras.