Ordem Jedi, ortodoxia mandaloriana e a mentalidade de seita

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Crianças tiradas de suas famílias, doutrinadas em uma ideologia que se vê como única representante da Verdade e do Bem, impedidas de construir relações afetivas profundas com pessoas de fora, e punidas caso escolham não mais fazer parte. Assim fica difícil defender!

No livro Cultish: The Language of Fanaticism, a linguista Amanda Montell explica que uma seita se caracteriza por três pontos principais: faz as pessoas se sentirem especiais (escolhidas), reforça o sentimento de subserviência a um mestre ou grupo a ponto de a vida sem essas figuras parecer impossível e convence as pessoas a romper com sua antiga forma de agir e senso de identidade. Na análise dela, a principal ferramenta para cooptar adeptos é a linguagem, tanto verbal quanto visual (frases, roupa, corte de cabelo, etc).

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Quando olhamos para Star Wars, vemos um cenário marcado por inúmeras seitas. Church of the Force, Disciples of the Whills, Nuns of G’avv’aar’oon, Frangawl Cult, só para nomear algumas das denominações que tem os Jedis, os Siths e a própria Força como foco de devoção. Outras como Dim-U Bantha Priests, Ancient Order of Pessimists e Fellowship of Kooroo, fogem da dicotomia principal desse universo e se dedicam a adorar animais, estruturas de pedra, doutrina filosófica, etc. Num ambiente onde a sociabilidade é fortemente influenciada pelo pertencimento a uma doutrina, a coisa mais difícil é escapar das seitas, ou pelo menos da mentalidade que é comum a todas elas. Não é à toa que os arcos narrativos dos personagens de Star Wars passam pelo conflito interno de permanecer ou romper com um determinado pacote de crenças.

Alguns Jedi, ao longo de suas tragetórias, questionaram as regras rigidas da Ordem, às vezes de forma pontual, às vezes definitiva. Qui-Gonn Jinn nunca fez parte do Conselho Jedi por desafiar a hierarquia, por exemplo. Foi ele que recrutou Anakin Skywalker, à revelia da cúpula, baseado numa profecia e na contagem de midi-chlorians. Yoda, depois de morto, incita Luke a queimar os livros da Ordem Jedi para libertá-lo dos erros causados pelo dogmatismo auto imposto. Ahsoka Tano foi expulsa da Ordem, mas se manteve fiel aos princípios (não às regras) dos Jedi.

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Os casos de Luke e Anakin Skywalker são mais interessantes, pois cada um a seu modo e no seu tempo, subverteram a doutrina dos Jedi. Anakin foi recrutado quando criança, apesar de ser mais velho do que os canditados que ingressavam na Ordem. A proibição de expressar o seu amor por Padmé (que já existia antes dele ser um padawan), e a expulsão de Ahsoka Tano, sua padawan, alimentaram a frustração dele com a Ordem Jedi. A Ordem Sith se aproximou dele, repetindo a fórmula das seitas (dizendo que ele era especial, que os sentimentos que ele tinha deveriam ser validados e não suprimidos), o levando a uma radicalização. Ele deixou uma seita para abraçar outra ainda mais rigida.

Já Luke começou muito tarde sua iniciação na caminho dos Jedi, só depois da Ordem ter sido destruída, e por isso ele abraçou mais a essência do que os dogmas. Sua jornada pessoal fez com que ele tomasse para si a missão de manter viva a Ordem Jedi, e para isso, no seu novo papel de mestre para uma nova geração de padawans, ele reestabeleceu as regras. Um exemplo disso, visto recentemente na série The Mandalorian, é quando Luke impõe uma escolha impossível para o jovem Grogu, entre um sabre de luz Jedi e uma cota de malha mandaloriana.

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Foram essas regras que, só na maturidade, Luke quebrou, inspirado pelo espírito de Yoda. O Episódio VIII – Os Últimos Jedi tem o mérito de abordar esse aspecto da narrativa – a mentalidade de seita. O dogmatismo de Luke o leva a expulsar seu sobrinho, Ben Solo da condição de padawan. O resultado disso é a adesão do agora Kyle Ren ao lado sombrio da Força, o que leva ao exílio de Luke e a separação de Leia e Han Solo. Para acertar as contas com o passado, Luke precisa abrir mão da ortodoxia e ficar apenas com a essência, por isso Yoda o instiga a queimar os livros da Ordem Jedi.

Os mandalorianos seguem a mesma receita. Din Djarin, o personagem principal da série, foi resgatado por um membro dos Children of the Watch, um grupo fundamentalista que havia sido segregado pela sociedade do planeta Mandalore. Seus membros sobreviveram ao genocídio que o povo mandaloriano sofreu pelas mãos do Império. Espalhados por diversos planetas, eles tentam restaurar seu credo, se apegando de forma radical aos dogmas.

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Há indícios de que os pais de Din Djarin faziam parte de outra seita (possivelmente a Disciples of the Whills). Ao longo da série ele encontra outros mandalorianos que não seguem a ortodoxia dos Children of the Watch, como Bo-Katan Kryze, e cria vínculos afetivos com pessoas de fora da sua seita. Esses são passos importantes para que ele comece a questionar os dogmas, a ponto de remover o capacete e deixar de ser um mandaloriano aos olhos de seus companheiros de seita.

A terceira temporada da série começa com a busca de Din Djarin pela redenção de seus pecados para voltar a ser, no entendimento dele, um mandaloriano digno. Esse movimento de culpa e redenção é parte essencial de qualquer seita, que joga com a fragilidade emocional de seus membros para manter o controle sobre eles e a coesão do grupo. Essa fragilidade emocional, que nos atinge a todos em maior ou menor grau, é a chave para compreender o sucesso da mentalidade de seita.

Somos seres gregários e o sentimento de pertencimento é essencial para nosso bem estar. Quando nos sentimos alienados da sociedade (de grupos que fazem parte do nosso dia a dia), nos agarramos ao grupo que nos oferece acolhimento. Pode ser um grupo identificado com os valores do trabalho (como os moradores do planeta Ferris na série Andor), ou os valores associados a um relacionamento especial com algo superior (como a Força). Mas essa busca pelo pertencimento pode nos levar à anulação, como quando vivemos imersos numa sociabilidade que entende como desviante um tipo determinado de comportamento. Não por acaso Anakin e Kyle Ren busca um fundamentalismo mais radical, mais castrador. Ambos foram rotulados como desviantes e problemáticos dentro de suas seitas originais.

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No livro, Amanda Montell identifica a linguagem das seitas na nossa vida cotidiana, na forma como as marcas se vendem como um estilo de vida, nas palavras motivacionais de psicólogos, coaches redpillados, academias de crossfit, discursos de políticos, CEOs e suas avaliações de desempenho, etc. Assim com em Star Wars, nós estamos cercados por uma sociabilidade marcada pela linguagem das seitas. “Que a Força esteja com você” dos Jedi, ou o “Como deve ser” dos Mandalorianos, a túnica marrom (quase franciscana) dos Jedi, ou a armadura e o capacete dos Mandalorianos, são as formas de linguagem que os diferencia da massa, que os torna especiais. “Make America great again” de Trump, ou “Olavo tem razão” da extrema direita brasileira (copiando a frase do fascismo italiano de Mussolini), são os fundamentalismos como os quais convivemos.

Sob esse aspecto não tem muita diferença entre o cenário de Star Wars e a nossa realidade. Até os fãs mais dogmáticos da saga usam a linguagem das seitas quando dizem, por exemplo, que o Episódio IX – Ascensão Skywalker, não é Star Wars de verdade, e que só os legítimos fãs reconhecem isso. O último filme das três trilogias é um retorno à mentalidade de seita, que acontece quando a fusão entre o lado luminoso e o lado sombrio não se concretiza, e o antagonismo entre as duas posições se acirra mais ainda, criando um novo fundamentalismo. Não mais a Ordem Jedi, mas um Skywalkerismo, onde Luke passa a ser figura lendária e seus seguidores adotam seu sobrenome para se diferenciarem da massa. Mito! Mito! 

 

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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5 respostas para Ordem Jedi, ortodoxia mandaloriana e a mentalidade de seita

  1. Gilmar de Jesus disse:

    Seu texto é maravilhoso. Explica muito bem o contexto em que vivemos. Só gostaria de ver um texto realmente imparcial. Quando tu usa um exemplo de extrema direita e não acrescenta também um de extrema esquerda, dá a entender que só há um lado extremo que é ruim, quando qualquer extremo é ruim. Não existe diferença entre “mito, mito” e “faz o L” no contexto do pertencimento e seita, mas só um lado é mencionado. Será que esse sentimento de pertencer a um grupo não guiou uma parte do seu texto?

    • Gilmar, acho que você quer uma coisa que não é possível. Como eu disse no texto, somos seres gregários e o sentimento de pertencimento é essencial para nosso bem estar. A linguagem das seitas se estrutura em função disso, e portanto aparece em tudo que se refere ao nosso vínculo com grupos, seja na família, no trabalho, nos nossos habitos de consumo e nas nossas afiliações políticas, portanto a mentalidade de seita não é algo “do bem” ou algo “do mal”, em si. Mas o lado negativo das seitas (fundamentalismo) é quando elas nos alienam do convívio com diferentes grupos (e esse é o ponto mais agudo de ideias como “somos os escolhidos”, ou “só o nosso lider é do bem”, ou ainda “quem se opõe a nós deve morrer”). Existe sim uma diferença entre “Mito, mito!” e “faz o L”.

      • LEONARDO RODRIGUEs disse:

        Sua resposta é a minha resposta, contudo eu mudaria o final, Lula, Lula e Mito, Mito são iguais, dormem na mesma cama, jedi e sith, todos se acham os heróis, se acham donos da verdade, se dizem o salvador, tem um inimigo em comum. No final herói e vilão é a interpretação do vencedor. Lula, Lula, e Mito, Mito é a necessidade de pertencimento do ser humano, e em um pais carente de herois nacionais, isso fica cada vez mais escancarado. Aliás, texto muito bom, porém parcial.

    • LEONARDO RODRIGUES disse:

      Concordo plenamente com o que você disse, a impressão que da é que os meios de comunicação são todos de esquerda pois até para comentar um assunto sobre seita, não admitiram que sim, o Lulismo é uma idolatria assim como o mito, culpa de nossa sociedade carente de Herois sem ideologias, Heróis no sentido puro da palavra. O que temos é apenas simbolos de um jogo politico em busca do poder.

  2. Só pra deixar claro, coisas como a defesa da meritocracia, da austeridade econômica, do empreendedorismo de superação à lá Partido Novo e da imparcialidade jornalística estão dentro da mentalidade de seita. Se vêem como verdades que estão acima das “ilusões”, e os indivíduos que as defendem se vêem como “melhores” por serem “mais esclarecidos”. O problema não é a mentalidade de seita, o problema é não perceber que você faz parte dela.

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