Estreou em 06 de maio aqui no Brasil a mais nova série de Star Trek, Strange New Worlds, derivada de Star Trek: Discovery, mas com um diferencial importante: trazer de volta a franquia às suas bases.
Após o apelo à nostalgia e à sofrível segunda temporada de Star Trek: Picard e as heresias de Star Trek: Discovery temos finalmente de volta a boa e velha USS Enterprise (NCC 1701) comandada pelo capitão Christopher Pike, com rostos conhecidos como Spock, Uhura e novos como La’an Noonien-Singh e M’Benga, num misto de inovação e referências à série clássica.
A história do primeiro episódio começa quando somos apresentados a Christopher Pike, capitão da Enterprise que precedeu James T. Kirk. A imagem não pode ser mais emblemática: Pike é um homem da fronteira. Sua imagem em meio à natureza (wilderness, aquilo que a fronteira doméstica representa) o remete à personagens como Daniel Boone (1734-1820) e Davy Crockett (1786-1836), homens da fronteira, personagens históricos transformados em mito pela cultura americana.
O imaginário da fronteira é algo muito caro aos Estados Unidos. É uma noção cristalizada em sua cultura desde o século XIX, uma linha imaginária que separa a Civilização (a Federação) da Barbárie (o que está Além). Mas é também a noção de que ser americano é algo forjado na experiência da fronteira, desse limiar, de que não é uma questão de nacionalidade, sangue ou território, mas sim o compartilhamento de alguns ideais, como o de que os homens nascem livres e iguais, a busca da felicidade sendo um direito, de que o governo é legítimo apenas com consentimento dos governados, que o indivíduo é a base da sociedade e de que o espírito americano não conhece fronteiras, elementos importantes do excepcionalismo americano. Esses elementos forjam a ideia de que todos que os compartilham podem ser americanos.
A missão exploratória da Enterprise, audaciosamente indo aonde ninguém jamais esteve, em essência, é mover a linha imaginária da fronteira adiante. Em outras palavras, civilizar.
SPOILERS ADIANTE! SIGA POR SUA CONTA E RISCO!
O primeiro episódio vai tratar justamente desse momento de expansão da Fronteira, e é bem simples: resgatar a tripulação de uma nave que foi perdida em um primeiro contato. No universo de Star Trek a regra (que é constantemente quebrada) é a de que a Federação dos Planetas Unidos só pode se revelar para sociedades em que já foi desenvolvida a tecnologia de dobra espacial (que permite viagens interplanetárias). Trata-se do momento em que os protocolos do primeiro contato são iniciados e o planeta pode aderir à Federação, podendo contar com toda a capacidade técnico-científica desenvolvida pela entidade, o que faz com que seja iniciada uma espécie de Idade de Ouro, de paz, onde as necessidades materiais são supridas e em que se vivencia um desenvolvimento integral de maneira sem precedentes.
Esse sempre foi um dos diferenciais de Star Trek. Enquanto grande parte da ficção científica volta-se para futuros distópicos, Gene Roddenberry, criador da série, imaginou um mundo em que a humanidade de fato evoluiu. E a imagem disso era bem clara: em plena Guerra Fria havia na ponte de comando, sob uma mesma autoridade política, americanos, russos, caucasianos, negros, asiáticos e seres de outros planetas. Era o modo de Roddenberry dizer: só evoluiremos quando abraçarmos nossa diversidade e aprendermos a lidar com nossas diferenças políticas.
Mas nem a ficção é tão simples. Na série, o planeta Kiley 279 acaba por desenvolver uma poderosa tecnologia bélica a partir de um incidente gerado pela Discovery. Uma das facções que lideram o planeta pretende utilizá-la para acabar com uma guerra civil de centenas de anos. Ao saber disso, o capitão Pike decide convencer os dois lados a não utilizarem a tecnologia, a resolver a guerra de maneira diplomática. A recusa da beligerante não é nada sutil: Quem tiver o porrete maior, ganha (Whoever has the biggest stick, wins), fazendo alusão à política diplomática pragmática americana do “Big Stick” iniciada por Theodore Roosevelt (1901-1909): fale manso e carregue um porrete.
Diante da negativa, Pike mostra quem tem o porrete maior ao revelar a Enterprise, forçando, assim, que os habitantes de Kiley 279 encontrem uma saída diplomática para a guerra. Durante as negociações, Pike mostra que a Terra passou por um momento similar, fazendo referência à invasão do Capitólio perpetrada pelos seguidores de Trump e por ele incentivada. Na série, o radicalismo da extrema direita levou a uma segunda Guerra Civil Americana, a uma guerra eugênica, e, finalmente, à eclosão da Terceira Guerra Mundial.
Pike deixa uma escolha aos habitantes de Kiley 279: disputar interpretações conflitantes de “liberdade”, o que fatalmente os levará à autodestruição ou juntar-se à Federação, ao que escolhem a última opção.
O episódio também faz uma referência a O Dia em Que a Terra Parou (1951), clássico dirigido por Robert Wise (que também dirigiu Star Trek – O filme, de 1979). No início do episódio, Pike assiste o clímax daquele filme, antecipando o desfecho da trama. O alienígena Klaatu, ao monitorar o desenvolvimento da tecnologia nuclear pelos habitantes do planeta Terra e o risco de uma guerra nuclear em plena Guerra Fria, dá um ultimato um pouco mais ríspido que o de Pike: caso a Terra ameace a paz galáctica ela será exterminada.
Se nem a ficção é tão simples, a realidade muito menos. Na vida real a extensão da fronteira provocou o extermínio dos povos indígenas americanos, guerras imperialistas e intervenções políticas que violaram o direito à autodeterminação dos povos. Em um mundo globalizado o isolamento não é uma escolha e a opção é clara: aprender a conviver ou destruição mútua. Ou vivemos juntos ou morremos juntos.
Star Trek: Strange New Worlds é a atualização do sonho de Gene Roddenberry. Que nós tenhamos um destino tão glorioso quanto o sonhado por ele.
Bom artigo, mas,deu uma forçadinha com a invasão do capitólio, amigo ..
Obrigado. Poxa, como assim? Não tá forçado não, inclusive na hora do discurso do Pike são utilizadas imagens do incidente do Capitólio. Dá uma olhada aqui que mostra uns prints:
https://boundingintocomics.com/2022/05/08/star-trek-strange-new-worlds-depicts-january-6th-riots-as-being-first-steps-to-world-war-iii/
Abraço!