Originalmente pensada como uma históira do Hulk, Monsters revela toda a beleza da arte e a melancolia de seu autor.
Lançado em 2021 pela Fantagraphics, Monsters, escrito e ilustrado pelo inglês Barry Windsor-Smith, é quase uma unanimidade nas listas de melhores quadrinhos do ano passado.
A cena de abertura mostra um pai violento espancando seu filho enquanto a mãe tenta salvá-lo. O tema do abuso infantil e suas consequências é o ponto central da história, que nos mostra a infância difícil de Bobby Bailey (nome escolhido para substituir Bruce Banner), seu recrutamento pelo exército para um programa experimental e sua transformação num monstro. Nas mais de 350 páginas da narrativa, Windsor-Smith ainda nos mostra com profundidade a personalidade da mãe de Bobby, as razões para a violência selvagem de seu pai, que foi para o front na Segunda Guerra Mundial, e as origens do programa secreto do exercito Prometheus.
O tema é sombrio e a arte de Windsor-Smith não esconde ou insinua nada. Mais do que isso, a técnica de gravura (que usa hachuras para os meio tons), que ele magistral e obssessivamente utiliza em todas as páginas, são uma outra maneira de falar das nuances entre trevas e luz do comportamento dos personagens. O tema do “American Home”, o lar das famílias norte-americanas, aparece diversas vezes na arte. Nos dizeres “lar, doce lar” de um quadro dentro da casa, no caminhão que se envolve numa perseguição de carros, no nível de detalhe da decoração, das texturas de tapetes e toalhas, na iluminação interna da casa filtrada pela janela e pela cortina. O terror e o aconchego que um lar pode significar, seja esse lar uma casa de família, um país ou uma visão de mundo.
Numa entrevista melancólica concedida ao canal Comix Experience, Barry Windsor-Smith deixa claro que não sente prazer em produzir histórias em quadrinhos, que não suporta a interferência de editores no seu trabalho e é muito crítico em relação ao próprio talento. Esse conflito interno explica em parte por que Monsters demorou mais de 30 anos para ser finalizada, seus atritos e mágoas com a Marvel e seus muitos anos sem produzir nenhuma página de HQ.
Assim como o experimento secreto que criou o Wolverine, mostrado na hq Arma X, talvez a hq mais famosa de Windsor-Simth, a ideia do abuso infantil como origem para o Hulk foi algo que ele desenvolveu sem falar nada para os editores da Marvel. Depois de produzir várias páginas dessas histórias, ele apresentou o trabalho na tentativa de vendê-las. Nos dois casos a Marvel gostou e pediu para ele seguir produzindo mais páginas, mas no caso do Hulk ele acabou brigando com a editora e levando o material embora. Alguns meses depois de apresentar as páginas do Hulk, ele soube por terceiros que no final da saga “Encruzilhada”, longa fase do Hulk escrita por Bill Mantlo, mostrava um pai abusivo sendo violento com a esposa e o filho.
É verdade que Mantlo já havia deixado pistas sobre a psiquê do Hulk ao longo das histórias que compõe o arco “Encruzilhada”, e que mostrar o ponto desencadeador dessas questões era um desfecho inevitável para a história do Hulk. A acusação de plágio e a reação de Windsor-Smith provavelmente nunca serão totalmente esclarecidas já que Mantlo, que sofreu um acidente grave, está há décadas debilitado.
Barry Windsor-Smith parece ter se tornado um artista amargurado que produziu uma história triste, mas incrivelmente bela e visualmente poética. Seu exercício narrativo na voz da mãe de Bobby (Janet), através das cartas que ela escreve para o marido (Tom), e de um diário onde ela vai aos poucos passando da negação dos abusos até o reconhecimento, ainda que ela tente de todas as maneiras criar oportunidades para que Tom mude seu comportamento, são o ponto alto da história.
Esse passeio pelos sentimentos e desejos de Janet contrastam com os detalhes macabros e assustadores dos experimentos nazistas que marcaram a participação de Tom na guerra, e que mais tarde dariam origem ao projeto Prometheus que recrutou Bobby.
Nada na arte de Monsters é por acaso. Vale a pena ser lido de uma vez para que pequenos detalhes que são retomados mais tarde não passem despercebidos. Espero que alguma editora traga esse material para terras tupiniquins em breve.
Li em algum lugar, ainda no segundo semestre de 2021, que será publicado este ano aqui no Brasil, mas não recordo qual será a editora.
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