As incongruências de Sweet Tooth

sweet-tooth-gusOu como monetizar a pandemia.

A série Sweet Tooth é uma adaptação dos icônicos quadrinhos de Jeff Lemire de mesmo nome e veio ao mundo com a promessa de dar nova roupagem ao mundo violento e obscuro criado pelo autor. A série acaba sendo uma espécie de versão soft das histórias em quadrinhos e se apresenta ao mundo como uma oportunidade de lançamento em meio a uma pandemia, com alguns tropeços em seus diálogos, subtexto e mundo.  

Sweet Tooth se passa em um universo onde uma doença conhecida popularmente como “o flagelo” começa a assolar a humanidade, fazendo que as pessoas comecem a adoecer e morram rapidamente. Ao mesmo tempo que o mundo entra em colapso, começam a nascer crianças híbridas entre humanos e animais, crianças que também são imunes ao flagelo e são perseguidas pela humanidade, tanto por ódio motivado pela suspeita de culpa dos híbridos pelo nascimento da doença, quanto pela possibilidade de estudo e criação de uma cura ou remédio para o flagelo.  

O mundo é apresentado logo no primeiro episódio, que é uma espécie de versão estendida da primeira edição do gibi. No episódio somos apresentados ao protagonista Gus, um garoto cervo que vive com seu pai isolado em meio a uma floresta, com um desenvolvimento muito maior da relação do protagonista com o pai em relação ao gibi.  

Embora o mundo apresente uma pandemia em escalas catastróficas e mostre o estranho nascimento de crianças híbridas, a série não tenta aproveitar o clima de medo geral e foca em ser uma espécie de fantasia apocalíptica esperançosa. Aspecto que fica claro pela estética geral da série que apresenta um mundo cheio de cores e panorâmicas que mostram na verdade um mundo muito bonito, aspecto que contrasta completamente com o clima e estética do gibi, ponto que não é em si negativo, mas evidencia as propostas diferentes dos dois produtos.  

A proposta esperançosa da série em certos momentos acaba soando incongruente em relação à história. A série o tempo todo tenta alertar o espectador sobre a noção de perigo vigente naquele mundo, mas esse mundo não parece um lugar tão perigoso assim. Pois além do clima esperançoso e alegre e de Gus, a série o tempo todo apresenta regiões onde pessoas tentam manter a vida “normal” e famílias isoladas que até conseguem criar seus filhos sem tanta influência do mundo catastrófico. O ponto alto de clima esperançoso se dá pelo arco da personagem Ursa e seu exército adolescente – jovens que lutam pelos direitos dos híbridos e possuem recursos como óculos de realidade virtual, energia elétrica à vontade e todo tipo de diversão adolescente transvestido de luta.  

O exército e o arco de Ursa talvez seja um dos pontos mais fracos de toda a temporada. Além da incongruência com relação ao mundo da série e sua escassez de recursos, eles ainda possuem um conflito sobre como lidar com os inimigos em diálogos expositivos demais em que colocam na boca dos personagens parte do subtexto óbvio da série.  

De todos os temas que a série tenta tratar, talvez o único realmente interessante seja a questão de quem é sua família, toda a questão da humanidade ter desperdiçado sua chance como projeto, tema tanto no quadrinho quanto na série, que é colocado em segundo plano ou, quando não, em diálogos expositivos como citado anteriormente.  

Outro ponto que em parte envolve o subtexto e criação da série é a pandemia de Covid ainda vigente no mundo no momento de lançamento deste produto. Citações como a novas cepas do vírus de forma insistente na trama, uma cena quase que totalmente desconexa no penúltimo episódio da série para criticar os negacionistas e a utilização de máscaras de pano pouco comuns na cultura pop em histórias de cenário pandêmico evidenciam o provável motivo da adaptação ter sido escolhida pela Netflix para ser lançado em junho de 2021. Aspecto que não atrapalha a trama de forma significativa, e pode até ajudar a série a ter seu sucesso.  

Apesar dos problemas citados a série entrega uma narrativa convincente, com relações sólidas entre personagens e um final de temporada em um dos pontos mais altos na trama do gibi. A adaptação segue levando a história do gibi a sério e no momento a narrativa parou por volta da edição 10/11 de 40 que o quadrinho original possui. A série não tem a necessidade de trazer o gibi fielamente para as telas (até porque muita coisa foi adaptada), mas o ponto em que a série termina a primeira temporada é de dar um gosto especial para quem leu os quadrinhos de Lemire.  

Sweet Tooth é uma série que pode sofrer por sua alta expectativa, parte da crítica e dos comentários estão colocando a série sobre um pedestal que pode mais atrapalhar do que ajudar quem assiste. É um programa que como entretenimento descompromissado tem suas qualidade e até vale ser acompanhado, porém está longe do brilhantismo esperado de uma série com tantas notas altas em críticas e um material original tão interessante. A expectativa de uma segunda temporada anima assistir a série principalmente para quem leu os gibis, pois a possível adaptação do arco “Exército Animal” é empolgante e pode finalmente engatar a série que passou tempo demais monetizando o momento da pandemia, esqueceedo de trabalhar melhor seu mundo e seu subtexto. 

Sobre John Holland

Procurando significados em páginas de gibi enquanto viaja pelos trilhos do conhecimento e do metrô. Sempre disposto a discutir ideias e propagar os quadrinhos como forma de estudo, adora principalmente a Vertigo, está sempre disposto a conhecer novos quadrinhos e aprender o máximo de coisas possível!
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Uma resposta para As incongruências de Sweet Tooth

  1. álvaro disse:

    uma coisa que eu não entendi foi aquele exército adolescente (bem forçado) lutando pelo direito dos híbridos e deixando um tigre preso naquelas condições

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