Super-heróis e a miopia da racionalidade

trump capitao americaPor que pessoas preconceituosas gostam de X-Men? Por que pessoas autoritárias amam Star Wars? Por que fãs de Watchmen identificam-se com Rorschach?

A primeira resposta seria a mais óbvia: porque elas não entenderam. Simples. Não notaram que X-Men fala sobre preconceito, não distinguiram que a Aliança Rebelde luta por uma democracia frente ao autoritarismo do Império, não enxergaram que Rorschach é uma crítica aos super-heróis.

E isso é verdade em um nível, poderíamos dizer, racional das coisas. Mas no nível arquetípico as coisas se complicam, ou melhor, se generalizam.

(Os parágrafos a seguir estão de acordo com a argumentação de Gilbert Durand em As Estruturas Antropológicas do Imaginário, salvo quando especificado o contrário)

Podemos reconhecer certas imagens como heroicas, que expressam a vitória sobre o destino e a morte em nosso imaginário. E o plural aqui designa nós como humanidade. O que equivale dizer que no nível do que poderíamos chamar de estrutura heroica, um plano superior de interpretação narrativa, nós não conseguimos diferenciar, por exemplo, o Justiceiro do Superman ou o Juiz Dredd do Capitão América, ou mesmo do Buda, ou de Jesus. Nesse nível nós apreendemos esses personagens e figuras religiosas todos como heróis.

Mas as coisas se complicam quando se decai para o nível do simbólico. Arquétipos são universais, mas não os símbolos. Os símbolos encontram-se no nível do que é histórico e sociológico, portanto polivalentes e alvos de disputas de determinados grupos em uma determinada sociedade, em uma determinada época.

Um exemplo. O Capitão América é símbolo do patriotismo dos Estados Unidos e dos valores mais elevados que aquela sociedade deseja representar: liberdades individuais, defesa da democracia, oportunidades iguais para todos etc. No episódio da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, muitos apoiadores de Trump presentes estavam vestidos como Capitão América.

A reação de Neal Kirby, filho de Jack Kirby, foi essa:

Essas imagens [dos apoiadores de Trump com símbolos do Capitão América] são nojentas e vergonhosas. Capitão América é a antítese de Donald Trump. Onde o Capitão América é altruísta, Trump é egoísta. Onde o Capitão América luta por nosso país e democracia, Trump luta por poder pessoal e autocracia. Onde o Capitão América fica do lado do homem comum, Trump fica do lado dos poderosos e privilegiados. Onde o Capitão América é corajoso, Trump é um convarde. Capitão América e Trump não poderiam ser mais diferentes. Meu pai, Jack Kirby, e Joe Simon, os criadores do Capitão América e veteranos da 2ª Guerra, estariam enojados por essas imagens. Essas imagens são um insulto a suas memórias.

Então é simplesmente isso? Aquelas pessoas não entenderam o real significado do Capitão América? Não. Como defende o filho de Kirby, aquelas pessoas não compreenderam a intenção dos autores ao criarem o Capitão América, porém, como criação, como personagem, o Capitão América é maior que a intencionalidade dos autores, até mesmo pelo seu sucesso e permanência, passando a compor o que poderíamos chamar de uma espécie de arcabouço mítico da sociedade americana, e, ao fazer parte dessa estrutura, abre-se ao campo histórico e social de disputa pela sua apropriação por determinados grupos.

Provavelmente se interpelados, aqueles apoiadores de Trump diriam que estavam ali defendendo a democracia, defendendo liberdades individuais etc. por isso estavam ali como Capitão América e não como outro personagem. Possivelmente não haveria argumento racional que os convencesse do contrário porque o Capitão América, como imagem, como símbolo, como expressão desses valores, é irracional no sentido que não pode ser abarcado pela razão.

É por isso que apoiadores de um regime autoritário podem identificar-se com a luta da Aliança Rebelde contra o Império, pois julgam que o regime autoritário que apoiam representa os valores pelos quais a Aliança luta. Como afirma Raul Girardet em seu Mitos e Mitologias Políticas, “um mesmo sistema de organização mítica não conduz obrigatoriamente a uma visão idêntica do sistema político a ser estabelecido ou da ordem social a ser instaurada”.

É por esse mesmo motivo que a compreensão da organização mítica de uma sociedade é de fundamental importância para uma compreensão mais acurada de suas disputas políticas e de sua história, e pelo mesmo motivo a compreensão dessa organização mítica é insuficiente, devendo ser desdobrada no campo histórico-político.

E, para finalizar com a pergunta que abriu esse texto, pessoas preconceituosas e não preconceituosas gostam de X-Men, democratas e autoritários gostam de Star Wars e apreciadores de Watchmen, críticos ou não a Rorschach, gostam do personagem porque esse nível de apreciação encontra-se naquilo que é arquetípico e simbólico, naquilo que não pode ser abarcado pela razão.

As divergências começam quando a racionalidade invade o campo do imaginário. Ou o contrário. Ainda que sejam concretamente inseparáveis.

Sobre Nerdbully

AKA Bruno Andreotti; Historiador e Mestre do Zen Nerdismo
Esse post foi publicado em Nerdbully e marcado , , , , , , , . Guardar link permanente.

8 respostas para Super-heróis e a miopia da racionalidade

  1. Vicente disse:

    Acabei de conhecer o Quadrinheiros, já li alguns artigos e gostei bastante da argumentação e da maioria das posições de vocês.
    Entretanto, nesse artigo específico, pelo menos pra mim, a leitura ficou um pouco dificultosa em função de como foi escrita, no final fiquei meio em dúvida sobre algumas coisas, acho que caberia uma linguagem mais simples para leigos como eu.
    No mais, ótimo blog, passarei a acompanhar, abraços!!

    • Nerdbully disse:

      Ola, Vicente. Obrigado por prestigiar nosso trabalho. Não se acanhe, diga o que ficou truncado no texto que a gente conversa. Grande abraço.

  2. GDD disse:

    Como sempre, certeiros nas análises. Parabéns pelo texto.

  3. Pingback: Links da semana #10 – Geek do Direito

  4. Adilson Franco Simão disse:

    Nada haver esse ponto vista amigão, eu gosto de x-men, star wars, e capitão america, e watchman, não sou preconceituoso, e sou contra o autoritarismo, e não vejo o ex presidente Donaldo trump desse jeito que você fala, diferente de alguns países , como Cuba,Venezuela, etc.. agora esses símbolos que você fala, qualquer um pode usar, seja preconceituoso, racista, ou autoritario, ou não. São apenas personagens.

    • Nerdbully disse:

      Ola.
      Que bom, Adilson ,que você não é autoritário, nem preconceituoso e não curte o Trump. Aí é que está a questão, esses personagens, como símbolos, são alvos de disputas pela sua apropriação no campo social e histórico.
      Veja aquelas pessoas que invadiram o Capitólio, por exemplo. Elas escolheram vestir-se como super-heróis, como o Capitão América, como o Justiceiro etc. Para aquelas pessoas esses heróis não são “apenas personagens”, elas os escolheram porque representavam algo importante para elas e isso mostra que são culturalmente, socialmente, relevantes.
      A apropriação do Capitão América, por exemplo, provocou até a reação de Neal Kirby, filho de um dos criadores do personagem, dizendo que ele não representava os ideais que aquelas pessoas defendiam.
      Qualquer um pode apropriar-se desses símbolos e é justamente dessa apropriação que o texto fala. Esses personagens expressam algo que é culturalmente e socialmente relevante, por isso alvo de disputas como as mencionadas. Por isso a interpretação sobre eles é múltipla e está em disputa.
      Mas claro, você é livre para vê-los como “apenas personagens”.
      Abraço.

  5. Pingback: A política como vocação de Palpatine e o golpe dos Jedi contra a República | Quadrinheiros

Comente!

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s