Precisamos da destruição para percebermos o valor da vida? Essa é uma das perguntas de Mary Shelley (1797 – 1851) em sua ficção pós-apocalíptica, O último homem.
O livro publicado em 1826 recebeu as piores críticas de todos os romances escritos pela autora de Frankenstein. Só voltaria a ser impresso em 1965. A história se desenrola nas últimas décadas do século XXI, e narra a saga de Lionel Verney, um jovem idealista, envolvido em guerras e disputas políticas, entre o fim da monarquia inglesa e revoluções republicanas. O cenário tem como reviravolta uma pandemia que se alastra pela América e pela Europa. No final os personagens todos perecem e Lionel fica sozinho, escrevendo suas memórias, planejando uma viagem para buscar outros sobreviventes.
Mary Shelley escreveu O último homem no período mais sombrio de sua vida: após a morte de três de seus filhos, dois por doenças infecciosas, e depois da morte do seu companheiro, Percy Bysshe Shelley, por afogamento num acidente de barco. A história pode ser lida como um tentativa da autora de lidar com todas essas perdas causadas por forças incontroláveis da natureza, mas é também um contraponto às ideias da Revolução Francesa que entendiam a razão como motor de um progresso contínuo. A distopia de Shelley, que termina com a imagem trágica de um homem solitário, é um contraponto ao ideal romântico da construção coletiva de um futuro sempre melhor.
Mas, diante, de uma pandemia real como a que nos assola nesse momento, caímos na tentação de encontrar na história de Mary Shelley intuições sobre a nossa realidade. Na segunda parte da história, por exemplo, enquanto a pandemia avança, os sobreviventes da America do Norte são recebidos na Irlanda e na Inglaterra (lugares ainda seguros), como refugiados. Mas logo começam a saquear e invadir.
Na terceira parte, quando o protagonista está na França, fugindo da pandemia, ele se depara com uma seita religiosa extremista. Seu líder, que se auto intitula o novo Messias, afirma que seus seguidores não vão sofrer os efeitos da doença. Quando se descobre que o Messias estava escondendo os casos de seguidores contaminados, ele se mata.
Os deslocamentos do protagonista e de seus coadjuvantes pela Europa se explicam pela previsão da autora a respeito da ciência do século XXI, baseada na ideias do século XIX. Diante de uma doença altamente contagiosa, o clima poderia ser um elemento importante (ainda que essa ideia fosse apenas uma teoria na época de Shelley). Por isso os personagens buscam climas mais frios para se protegerem já que a pandemia piora a cada verão. E esse é também outro paralelo interessante entre nossa realidade e a narrativa – a pandemia dura vários anos, com picos de contágio e períodos mais amenos.
Ela ainda fala sobre a busca por uma vacina, coisa que no início do século XIX era uma ideia de vanguarda na medicina, pouco testada. Isso mostra o quanto a autora se interessava pela história e desenvolvimento da medicina e da ciência, apesar de seus escritos falarem mais sobre os perigos da ilusão de controle da razão humana.
Entre fanatismo religioso, negacionismo científico, polarização política e guerras diante da escassez de recursos (como as atuais por equipamentos de proteção e máscaras), Mary Shelley acerta muito!
Pelo olhar de Lionel vemos que no auge da pandemia a natureza reafirma a resiliência da vida – a primavera chega com explosões de beleza, sem nenhum acanhamento diante do sofrimento humano, que, no fundo, é um alívio para ela. E é observando a natureza e rendendo-se a ela que Lionel recupera sua fé não apenas na sobrevivência, mas na beleza, no valor da vida. Da vida dele, da vida da autora e de todos os seres humanos.
Nas últimas páginas do livro Lionel Verney / Mary Shelley chega a uma conclusão: “Existe apenas uma solução para o intricado enigma da vida; melhorar a nós mesmos e contribuir para a felicidade dos outros.”
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