Entre 1997 e 1998 Jamie Delano (Hellblazer) escreveu a série 2020 Visions para o extinto selo Vertigo, apresentando um futuro assustadoramente distópico para os leitores. E terrivelmente próximo do nosso presente.
O título da série é uma referência à visão 20/20, termo usado para atestar que alguém tem uma visão perfeita. E é essa “visão perfeita” que em 1997 parecia exagerada, doentia e pessimista, mas que hoje nos assusta de tão acurada. A série teve 12 edições com 4 histórias distintas (cada uma com 3 edições). No Brasil só as duas primeiras histórias foram publicadas ainda nos anos 90 pela Editora Abril e a Tudo em Quadrinhos.
Cada história foi ilustrada por uma artista diferente: Tesão de Viver (#1-3) por Frank Quitely, La Tormenta (#4-6) por Warren Pleece, Renegado (#7-9) por James Romberg e Repro Man (#10-12) por Steve Pugh.
Tesão de Viver é a história mais conhecida, mais interessante, e por isso mesmo mais comentada (o desenho também é o melhor de toda a série). Nela o protagonista baby boomer Alex Woycheck é contaminado por um vírus mortal que dá tesão. Ele passa o vírus para uma antiga namorada e os dois são levados para uma ilha de confinamento (campo de concentração). Lá ele ajuda ela a morrer e termina liderando uma revolução armada contra os ricos (isolados da pandemia em torres protegidas pelo Muro, numa Nova York decadente). Ele entra numa das torres, sequestra uma jovem de 20 anos (da geração milênio /Y) e sobe até o terraço. No monólogo final ele ameaça se atirar nos ventiladores que purificam o ar da torre (para contaminar todos os ricos), mas acaba desistindo já que seu tesão de viver (turbinado pelo vírus) é mais forte.
Algumas alusões possíveis com o 2020 real, além da pandemia que se alastra rapidamente e da divisão brutal entre ricos e pobres, temos a referência a um Muro para manter o contágio longe (o equivalente a manter os “imigrantes sujos” longe). Também podemos citar o conflito de gerações (boomers X milênios) que hoje é muito forte nos EUA especialmente no debate político e econômico, e uma passagem que mostra os ricos ameaçados por um vírus virtual que destrói reputações e apaga a memória/registros digitais.
Mas talvez a aproximação mais interessante entre realidade e ficção é que hoje na disputa pela liderança (protagonismo) dos EUA temos 3 boomers: Donald Trump (73 anos), Joe Biden (77 anos) e Bernie Sanders (78 anos). Na história o personagem Alex Woycheck fala como Biden, tem uma fixação por sexo como Trump e lidera uma revolução como Sanders. Não dá pra ser mais 20/20 que isso!
La Tormenta se passa no mesmo “universo” da primeira história, mas foca em outra região dos EUA. Depois da morte de Fidel Castro a Flórida anexou Cuba. A Neuva Flórida é um lugar dominado por milicias, governado por conservadores religiosos e que tem um submundo que oferece sexo, drogas, cirurgias plásticas e todo tipo de pseudo-medicina. Neste cenário que ainda inclui a ameaça constante de furacões e a esterilidade masculina causada pela poluição, o vício do detetive Jack Atlanta em sexo o obriga a investigar o desaparecimento de uma jovem.
Depois que ficamos sabendo que a vítima tinha sido sequestrada para gerar bebês para o mercado negro de crianças recém nascidas, o desfecho da história é na mesa de cirurgia, numa operação plástica de vingança que acaba em morte por envenenamento devido a uma “proteção” anti-estupro, no melhor estilo Jamie Delano.
Mas além das milícias e do governo cristão fundamentalista, a história tem outros paralelos possíveis com o nosso presente. Num 2020 onde pessoas fazem enemas em seus próprios filhos, usando alvejante industrial, depois de ver receitas na internet para “curar” autismo, onde se intoxicam com um produto feito para limpar aquários, porque o presidente do país declarou que tal composição química cura o Covid-19, a Nueva Flórida não parece assim tão fantasioso.
Renegado conta as desventuras de Ethan McWrirter cruzando o meio oeste dos EUA. Nascido em Montana ele foge de casa aos 13 anos e vai para o Michigan, onde aos 18 é deportado para o Texas. Delano imagina um futuro onde vários estados dos EUA são dominados por fundamentalistas cristãos e supremacistas brancos que formam o Bible Belt. A população negra se defende em cidades como Detroit sobre as regras rígidas do islamismo.
No Texas ele é recrutado por uma milícia que defende o gado dos ataques dos Kaotek, uma tribo que é uma mistura de nativos americanos com hippies e tecnologia Mad Max. A história se perde um pouco e no final Ethan se junta à tribo. Delano criou um fio que liga todas as histórias – o Alex Woycheck da primeira história é pai do detetive Jack Atlanta da segunda. Ethan e seu irmão gêmeo são filhos do transexual Atlanta (foram arrancados de seu ventre e vendidos para famílias diferentes). Na história de Ethan, ele procura o irmão Adam, sem sucesso, e na quarta história vamos conhecer esse irmão.
Os paralelos com hoje ficam um pouco mais fracos nessa história. Mas a aparição de supremacistas brancos e da Ku Klux Klan dominando abertamente a política e a justiça de algumas regiões dos EUA é um ponto relevante. O vídeo abaixo é um compilado trechos de cultos evangélicos no EUA de agora. Qualquer semelhança com o fundamentalismo dominante no futuro imaginado por Delano, não é coincidência (lembrando que esse discurso não é exclusividade dos EUA, tá ok!).
Repro Man conta a história de Adam na California. Ele foi criado por feministas eugenistas que pregam que o sexo (pensar em sexo está incluído) é um abuso, que destrói a beleza e o amor, e que os homens que fazem isso (ou pensam nisso) são monstros. Só que ao mesmo tempo ele é um reprodutor, alguém que não foi esterilizado e que, portanto, pode doar material genético para gerar novas crianças.
Na Califórnia a reprodução natural é proibida. Grandes corporações de reprodução assistida são autorizadas a fecundar óvulos com o material de doadores como Adam. Além de doador ele é ator de hiper-dramas e garoto propaganda de um das corporações de reprodução. Na história ele é sequestrado pela M.A.M.B.O., um grupo de mulheres ativistas que defendem direitos reprodutivos, segurança na gestação e cuidados obstétricos. Elas querem desafiar as leis e fecundar um óvulo usando o método mais tradicional possível.
Adam resiste. Sua criação, a hipnose e as drogas inibem a libido e fazem com que ele fuja ante a aproximação de uma mulher. A corporação descobre o esconderijo das M.A.M.B.O., mas Adam decide seguir com Zonia, uma das ativistas. No caminho conhecem um casal que está na estrada para conhecer o neto. O genro deles, um descendente de navajo, vive com sua tribo onde todos procriam de forma natural.
Mais a frente encontram uma mulher grávida que vai vender seu filho para traficantes de crianças. No desfecho Adam e Zonia decidem comprar a criança (um menino) e começar uma família.
Ainda que a ideia de um feminismo opressor, que faz (ou quer fazer) com os homens exatamente o que os homens fazem com as mulheres, seja uma ideia que muitos homens hoje acreditam ser uma realidade estabelecida, esse futuro imaginado por Delano é uma bobagem. Mas alguns lances são interessantes, como as questões de libido de Adam (hoje sabemos que a exposição à pornografia causa isso) e mulheres lutando por direitos reprodutivos e obstétricos. Num outro momento da história Zonia diz que seu nome é Amazonia em homenagem ao lugar onde o pai dela morreu tentando salvar as árvores. Ela diz que parece que ele perdeu a guerra. Ponto pro Delano, infelizmente!
Ethan e seu irmão gêmio são filhos do transexual Atlanta (foram arrancados de seu ventre e vendidos para famílias diferentes).
Pequena correção – gêmeo no local de gêmio.
De resto, show de bola.
Alterado. Obrigado.
Texto muito interessante, me fez reler essas HQs. Parabéns.
Agora eu entendi por que mileniais e geração z são completamente retardados mentais com psiquê sintética!
Isso é que é comentário embasado, que considera toda a complexidade contemporânea, pontua os problemas e propõe soluções!