Grant Morrison na Heavy Metal… E daí?

Uma capa para anunciar a chegada do novo chefe.

Uma capa para anunciar a chegada do novo chefe.

No dia 06 de Julho de 2015 foi anunciada a entrada de Grant Morrison como novo editor chefe da revista Heavy Metal. Um fato notório, a princípio. Mas … e daí? Que revista é essa? Por que ela importa tanto para os autores e para os leitores? Por que se gerou todo esse furor? Da onde ela vem? E com a entrada do Morrison, para onde ela vai?

Para entender bem essa notícia devemos esquecer, por alguns momentos, os quadrinhos de super-heróis. Deixe de lado a idéia das revistas que publicam apenas um personagem em uma história que segue cânones e os ordenamentos do mercado de quadrinhos mainstream. Pensar em como seria uma revista que abre espaço para que os desenhistas e roteirista possam brincar e testar o que tiverem vontade. A Vertigo vem a mente, certo? Mas cuidado! Ela não foi a primeira.

Em 1975, ou seja, quase 20 anos antes de Karen Berger ou Alan Moore ganharem o destaque que têm hoje em dia, surgia na França a Métal Hurlant (Metal Vibrante). Uma revista focada em produzir material de Ficção Científica e Terror, com total liberdade. Ela, de algumas maneiras, aproxima muito do que foi a House of Mysteries e a House of Secrets, as revistas que dão sustento para o que viria a ser a Vertigo.

Diferente das produções americanas, a Métal Hurlant surge pelas mãos dos próprios artistas, que estavam cansados de serem censurados e cerceados pelos editores. É nesse intuito que que é fundada a editora Les Humanoïdes Associés, composta por alguns dos nomes canônicos dos quadrinhos europeus, como Jean Giraurd. Talvez não tão conhecidos pelos leitores acostumados com a produção americana, eles são referência para nomes como Stan Lee, Mike Mignola e Jim Lee, além do próprio Morrison.

Capa da primeira edição. Isso em 1975...

Capa da primeira edição. Isso em 1975…

Jean Giraurd era um artista nato e grandioso. Usando o nome Gir, trabalhou por muitos anos na publicação Blueberry, um quadrinho de Western no qual o personagem principal era Michael Steven Donovan, um cowboy nada convencional. Inspirado pelo Faroeste Espaguete de Sergio Leone, as histórias vão percorrendo as construções idílicas e mitológicas do Oeste Americano. Seu trabalho sem dúvida é uma marca, não pela sua constância plena, mas pela capacidade de Gir em mudar seu estilo sem perder suas características próprias.

Capa de uma das edições especiais, feita com base em técnicas não convencionais aos quadrinhos como a tinta óleo

Capa de uma das edições especiais, feita com base em técnicas não convencionais aos quadrinhos como a tinta óleo

Mas Giraurd não se bastava apenas enquanto Gir, daí surge o pseudônimo Moebius, sob o qual criou trabalhos impressionantes de ficção científica. Um primeiro destaque é para Arzach, um alienígena que viaja por diferentes mundos no lombo do seu pterodáctilo atacando e destroçando o que vê pela frente. Com traços inspirados em descrições de H. P. Lovecraft e um futurismo art nouveau, Moebius criou mundos e experiências estéticas, sempre sem nenhuma fala ou onomatopéia. Um marco estético e poético.

O desenho é levado á um outro patamar estético e poético. Sem uma palavra que seja, tudo está narrado...

O desenho é levado á um outro patamar estético e poético. Sem uma palavra que seja, tudo está narrado…

Um segundo quadrinho de Moebius que merece a citação é The Long Tomorrow. Conta a história de um detetive num futuro distópico e confuso, feito de altos prédios e uma decadência pútrida-orgânica. Ridley Scott (Diretor de Blade Runner), George Lucas e William Gibson (autor de Neuromancer e pai da ficção ciberpunk) citam diretamente esse trabalho como influência nas suas produções, com direito a referências declaradas.

Qualquer semelhança com Blade Runner ou Transmetropolitan NÃO é mera coincidência.

Qualquer semelhança com Blade Runner ou Transmetropolitan NÃO é mera coincidência.

Descrever o trabalho de Moebius e seus influenciados seria algo interessante, mas no momento desejamos entender não apenas ele, mas sim a Métal Hurlant, que é da onde surge a Heavy Metal. Para tal, lançamos mão de outros artistas que também passaram pela revista, como Milo Manara (que dispensa descrições), Philippe Druillet (conhecido ilustrador de histórias do H.P. Lovecraft) e Alain Voss (capista dos LPs dos Mutantes). Além dos artistas europeus a revista publicou trabalhos de artistas americanos como Bernie Wrightson (criador do Monstro do Pântano) e Richard Corben (Colorista de Eisner).

Mesmo que de maneira meio indireta, o Brasil também passou nessa revolução.

Mesmo que de maneira meio indireta, o Brasil também passou nessa revolução.

Em 1975 os editores da National Lampoon estavam procurando quadrinhos para serem publicados em sua revista. Nascida de um ambiente universitário, mais precisamente Harvard, a publicação é um ode ao humor americano. Semelhante à MAD em muitos sentidos, tinha em suas edições materiais diversos, incluindo produções da nona arte.

Na mesma linha que a MAD, mas menos infantil e mais sexual. Grande parte do humor televisivo dos EUA passou pela redação da revista, inclusive os criadores do Saturday Night Live

Na mesma linha que a MAD, mas menos infantil e mais sexual. Grande parte do humor televisivo dos EUA passou pela redação da revista, inclusive os criadores do Saturday Night Live

Em 1976 um dos donos da revista americana, que estava em viagem para vender os diretos de publicação em outras línguas, toma conhecimento da Métal Hurlant e percebe o potencial da revista para o público americano. Assim, em Abril de 1977 sai a primeira edição da Heavy Metal, levando para os EUA material adulto que estava sendo produzido na Europa, como o caso de Moebius.

Com a evolução da revista, passam a ser publicados outros materiais de outros autores, além de abrir ainda mais espaço para artistas americanos. Sem gastar mais linha referenciando nomes, o que importa neste momento é o fato de que a Heavy Metal se tornou a porta de entrada do quadrinho adulto experimental nos EUA. Grant Morison assumir essa publicação, portanto, é um marco importante, quase um retorno à sua origem enquanto espaço de experimento, mas em novas formas.

Capa da segunda edição da Heavy Metal. Não... Eu não repeti a imagem, preste atenção!

Capa da segunda edição da Heavy Metal. Não… Eu não repeti a imagem, preste atenção!

Nos últimos 23 anos a revista teve como editor chefe Kevin Eastman, o criador das Tartarugas Ninjas, o que mostra o pé no underground e no não convencional que a revista sempre manteve. O “pai” dos répteis cascudos sempre declarou seu encanto pelo quadrinho underground, como os da Zap Comics de Crumb, e buscou que a revista tivesse essa visão, mesmo quando as investidas eram em direção aos filmes e outras mídias.

Para conhecer um pouco do Grant Morrison, dá uma assistida no nosso Guerra dos Roteiristas aqui:

No site da revista há uma entrevista detalhada com Grant Morrison, com citações e referências diretas à Métal Hurlant, indicando o que ele vê de conexão entre a publicação francesa e seu futuro trabalho. Nas palavras do próprio escocês:

Eu consigo facilmente definir uma linha de influência. A Heavy Metal americanizou a estética francesa da Métal Hurlant – a versão em quadrinhos da Nouvelle Vague – mas a especifica aproximação européia à noção de quadrinho adulto de ficção científica, na qual poderiam figurar idéias controversas e uma sexualidade mais aberta – certamente caiu no DNA da cena alternativa britânica que deu seu sangue para a Vertigo nos anos 90.

É importante lembrar que Morrison estava começando a sua carreira na Escócia quando surge a Métal Hurlant. Quadrinhos de Moebius, Druillet, Bilal e Corben são marcos para o trabalho de Grant. Isso mostra a importância e as raízes, aparentemente tão distantes, do quadrinho alternativo atual com o quadrinho francês do final dos anos 70 e começo dos anos 80. Vê-se assim uma globalização real da linguagem, derrubando a idéia de que a nona arte é importante apenas nos EUA no cenário dos super-heróis.

Não foi tratado aqui, mas Druillet também tem um papel importantíssimo nessa história. Eis uma das páginas de Lone Sloane, um personagem catártico e bem importante para a Métal Hurlant.

Não foi tratado aqui, mas Druillet também tem um papel importantíssimo nessa história. Eis uma das páginas de Lone Sloane, um personagem catártico e bem importante para a Métal Hurlant.

Mas enfim, o que esperar da entrada de Morrison na revista? Pode ir desde uma revolução intensa até apenas um burburinho de Marketing. Podemos ir de algo tão impactante quanto a criação da Image Comics, que abalou a organização das editoras, à apenas o fortalecimento de uma revista de nicho. O artista escocês deixa claro que irá viver uma imersão nesse mundo, mudando desde o seu modo de vestir até os seus costumes, ficando mais Punk. No mínimo temos a certeza de que será um percurso interessante e digno de ser acompanhado de perto.

Destacamos aqui uma das falas de Morrison que responde a última pergunta que fizemos no primeiro parágrafo:

[…] Com a Heavy Metal, eu estou fazendo a mesma coisa que eu faço quando me pedem para “redescobrir” um personagem como o Super-homem ou a Mulher Maravilha; eu cavo até as raízes, para descobrir o que fez a ideia vingar, e então tento construir a minha visão definitiva do material. Heavy Metal era o quadrinho para o qual você evoluía quando ficava entediado pelos livros de super-herói, então eu estou cavando fundo em todos os outros livros e artistas que me inspiraram quando eu ainda era um adolescente […] Eu quero mais músicos na revista e também mais mulheres. Além desse turbilhão de influências e idéias iniciais, eu posso certamente prometer mais ficção científica e mais sexo!

Capa da mais recente edição. Lembrando que é só em fevereiro que Grant Morrison começa a atuar no seu "novo emprego"

Capa da mais recente edição. Lembrando que é só em fevereiro de 2016 que Grant Morrison começa a atuar no seu “novo emprego”

Na visão deste que vos escreve, teremos uma mudança brusca no mercado. Um dos nomes de maior peso dos quadrinhos agora terá a liberdade editorial que nunca teve. Os experimentalismos anunciados no livro “Supergods” poderão ser levados à sua máxima potência. Isso, claro, pode acabar em um fracasso de vendas, uma vez que não haverá mais Dan Didio ou Karen Berger para segurar as idéias e impulsos, de maneira a tornar palatável e compreensível o discurso transcendentalista de Morrison. Ao mesmo tempo, ele atuará mais como editor do que como autor, logo, ele será mais um catalizador de novos talentos vindos do mais obscuro underground. Teremos uma pequena revolução, que pode oxigenar e muito o mercado já saturado dos quadrinhos, mas pode acabar naufragando assim como o dadaísmo foi para as artes plásticas.

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7 respostas para Grant Morrison na Heavy Metal… E daí?

  1. Túlio Vilela disse:

    Artigo oportuno e que mostra as coisas dentro de uma perspectiva histórica. Parabéns!
    Quanto ao Morrison, ser um bom roteirista não torna alguém necessariamente um bom editor. A Metal Hurlant tinha ótimos desenhistas, mas como roteiristas deixavam muito a desejar. As revistas Animal e Circo eram mais interessantes do que a edição brasileira da Heavy Metal.

    • Sidekick disse:

      Valeu pelos apontamentos Túlio! Sem dúvida que um fato não indica uma correlação direta com o outro (autor X editor). Mas era para trazer mais a provocação e a reflexão mesmo.
      As edições brasileira são sempre casos a parte, ainda mais pq tinha a Circo no mesmo período, publicando até coisas do Wolinski!!!!
      Muito obrigado pelo comentário

  2. Pedro Bouça disse:

    Menos. Bem menos. Grant Morrison está bem longe de ser o gênio que ele diz ser (o segundo melhor negócio do mundo é comprar o Morrison pelo que ele vale e vender pelo que ele diz que vale, o melhor é fazer o mesmo com o Steve Englehart!), definitivamente ele não tem temperamento de editor e não fazemos ideia se terá o orçamento para fazer tudo o que quer (Quitely e cia. são artistas CAROS! A 2000 AD vende mais do que a Heavy Metal e não tem grana para menter esses caras nas suas páginas…).

    Compará-lo com movimento dadaísta ou mesmo a Métal Hurlant original é um exagero sem tamanho.

    • Sidekick disse:

      Caro Pedro,

      acho que vale, e muito, uma releitura atenta.

      Não digo que o Grant Morrison é o melhor editor do mundo. Apenas ressaltei suas qualidades e tentei ir na contra mão do que muita gente disse, mostrando os bons potenciais que podem se concretizar (ou não…)

      Não comparei o dadaísmo ou a Métal Hurlant diretamente ao Morrison, mas fiz relações livres, ou seja, mostrei a relação da Heavy Metal com a revista francesa E a relação do Morrison com a revista francesa, além da americana.

      Especificamente, quanto ao dadaísmo: não disse que eles tem a mesma qualidade, mas sim que pode ocorrer como ocorreu com essa vertente do surrealismo, que teve um impulso, mas que depois perdeu seu tonus, servindo como experimentalismo intenso.

      Comparar é diferente de usar como recurso argumentativo.

      Obrigado pelo comentário.

  3. Confesso q acho a pegada “fantasia medieval high tech distópico com mulheres peitudas” q geralmente vejo nas Heavy metal entediante pra caralho… já deu. Quem sabe com o Morrison n comando, não surga algo novo? Acho que é o lugar certo pra ele brincar.

    • Sidekick disse:

      Carlos! É bem por aí a minha idéia.
      Vamos dar uma chance para o cara! Pode ser muito bom, como pode ficar um puro lixo. Potencial existe, mas se vai se concretizar ou não…. são outros 500.

      Muito obrigado pelo comentário!

  4. Pingback: A hora e a vez dos pequenos – Polvo Rosa Books | Quadrinheiros

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