
Imagino que meus pais tenham ficado muito felizes quando aprendi a ler. E não só porque isso aconteceu relativamente cedo, porque eu fosse o primeiro filho e tudo aquilo fosse novidade pra eles também, porque eu começava a dar meus primeiros passos na direção de um futuro brilhante ou porque eu finalmente parecia ser menos tonto. (Sim, eu era bem lerdo pra entender as coisas, ao que parece — não que seja muito melhor hoje). Depois de muito tempo e paciência, eles finalmente poderiam me deixar lendo sozinho enquanto faziam qualquer outra coisa.
“Ler é sonhar pela mão de outrem.” Fernando Pessoa

Como qualquer criança, eu gostava muito de ouvir histórias. Sempre achei ruim que meus pais não tivessem o hábito de contar histórias na hora de dormir, ainda que fizessem isso muitas vezes ao longo do dia. E, como qualquer criança, gostava de ouvir várias vezes as mesmas histórias. Entendo como isso pode parecer desesperador para um adulto hoje, mas crianças não costumam levar o conforto dos pais em consideração quando querem se divertir. Pelo menos eu não levava. E eles deram muita sorte de não existir
Galinha Pintadinha naquele tempo.


O nº. 1 do
Chico Bento (ed. Abril) — meu primeiro gibi, ou pelo menos é como gosto de lembrar — foi lido por eles incontáveis vezes. O
Dicionário Disney também. E esse deve ter sido ainda mais desesperador, porque não tinha história alguma, só palavras associadas a desenhos. E a mesma coisa valia para todos os gibis que entravam em nossa casa. Eram longas horas sentado ao lado deles, enquanto liam as mesmas páginas várias e várias vezes. E eu ainda protestava quando meu pai tentava passar o gibi ou o livro para minha mãe no meio do caminho.
Então, vocês agora entendem como eles devem ter ficado felizes quando perceberam que eu podia ler tudo sozinho. Menos os “gibis japoneses”.

Ninguém se preocupou em me ensinar que aquilo se chamava mangá. Então, pra mim era só um gibi com letras que eu não conseguia ler. Curiosamente, eu entendia que aquilo estava escrito em japonês e que japonês se escrevia de uma maneira diferente do português. E, mais curioso ainda, não me lembro de naquela idade ter acreditado que também poderia aprender a ler japonês, embora eu tivesse tentado inglês e grego ainda muito cedo (e bem antes do japonês).

Não tínhamos muitos mangás em casa, mas meu pai às vezes pegava alguns emprestados de amigos. Até hoje não sei se ele realmente preferia
Tetsuwan Atomu (ou
Astro Boy aqui no Ocidente), de Tezuka-
sensei, ou se era isso que seus amigos liam e ele acabava lendo por tabela. Ou talvez ele lesse outras coisas e deixasse
Atomu pra ler comigo porque era mais adequado pra idade.
Mas a maioria das minhas lembranças de sentar ao lado dele, esperando a tradução das histórias, é preenchida pelas aventuras do menino-robô.
Meu primeiro contato com mangás foi muito próximo das minhas primeiras experiências de leitura em geral. Então, não é possível dizer que fosse algo profundamente diferente do que eu conhecia (porque eu não conhecia nada), mas algumas diferenças eram bem óbvias. A primeira delas era a quantidade de páginas por história. Outra era a ausência de cor. Mas o que mais me chamava a atenção era como as histórias eram tristes.

Qualquer leitor de mangás com mais experiência sabe que um dos grandes méritos de Tezuka-
sensei era equilibrar ação, aventura, comédia e drama na mesma série. Se uma história era mais engraçada, certamente viria outra em seguida com um apelo diferente. E as histórias tristes eram realmente tristes.
Recuperando minhas memórias das leituras com meu pai, lembro como me perturbava ver que, embora Atomu sempre saísse vitorioso no final, muitas dessas vitórias não se pareciam com vitórias. Pessoas boas que mereciam ser salvas e que ele não conseguia salvar, pessoas boas que se sacrificavam para que ele pudesse salvar outras, o tipo de situação que é difícil para uma criança entender quando tentam ensiná-la que o bem sempre vence no final.

Ter meu pai ao meu lado para explicar que pessoas más muitas vezes fazem pessoas boas sofrerem sem necessidade foi importante, agora que olho para trás. Ele não se limitava a traduzir as histórias e imitar as vozes. Ele interrompia a leitura para explicar alguma coisa que considerava importante. Isso nem sempre me agradava, porque eu queria continuar ouvindo a história, mas meu pai sempre teve essa tendência de querer explicar as coisas. E acho que aprendi uma ou outra.
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Sobre Quotista
Filipe Makoto Yamakami é historiador, professor, músico amador, twitólatra, monicólatra, etc.
E realmente precisa de um emprego que lhe permita pagar as contas.
@makotoyamakami