O ataque de extremistas ao satírico Charlie Hebdo já é descrito como o 11 de Setembro da imprensa. Je suis Charlie se tornou a bandeira de jornalistas, artistas, cartunistas e chargistas no mundo inteiro — cristãos, judeus, ateus, muçulmanos —, porque um ataque à imprensa livre é um ataque à civilização. Somos todos vítimas. Somos todos Charlie. Mas… somos mesmo?
“Merece! Eu ouso dizer que ele merece! Muitos dos que vivem merecem a morte. E alguns dos que morrem merecem a vida. Você pode concedê-la a eles? Então, não seja tão ansioso para condenar alguém à morte, pois mesmo os muito sábios não podem ver todas as coisas.” Gandalf in J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (tradução livre).
Vamos começar pelas coisas óbvias.
(1) O ataque de extremistas à Charlie Hebdo é inaceitável, revoltante, catastrófico, assim como todo e qualquer atentado à liberdade de imprensa, em qualquer parte do mundo, não importa se venha de um governo, organização paramilitar, célula radical isolada, religiosos, não-religiosos, anti-religiosos, esquerdistas, direitistas, etc. A liberdade de expressão é um dos fundamentos daquilo que hoje chamamos de civilização e, se (2) é verdade que alguns elementos da imprensa (repórteres, editores, canais, etc) muitas vezes cometem abusos, também é verdade que o sistema democrático nos garante os meios para confrontar legitimamente os responsáveis por esses abusos. Existe o direito de resposta, a coluna do leitor, o ombudsman, os tribunais e até o mi-mi-mi (como diz o nosso Nerdbully, “se não quer crítica, não publica”). Mesmo que a civilização ocidental ainda esteja muito longe da plena democracia, temos (ou deveríamos ter) esclarecimento político suficiente para compreender que a morte violenta, principalmente a de inocentes, não é um caminho aceitável para manifestação de discordância de idéias políticas, filosóficas, religiosas ou de qualquer outra natureza.
Também é preciso deixar claro que (3) há muita diferença entre compreender a violência e justificá-la, como já disse Nietzsche. Em entrevista à rádio CBN, o jornalista Alberto Dines, do Observatório da Imprensa, se revelou pasmo diante das análises de alguns teóricos que, preocupados em historicizar os ataques à Charlie Hebdo, se mostraram incapazes de demonstrar repúdio, no mínimo um incômodo com toda a situação. Pensar é sempre importante, não deixar as emoções dirigirem o pensamento é fundamental. Isso não significa que seja uma coisa boa deixar de sentir. Se há algo que possa ser definido como humanidade (no sentido do conjunto de características que nos identificam como humanos) é a capacidade de empatia, sentir o que o outro sente. Se deixamos de nos sentir perturbados com o sofrimento do outro, parte da nossa humanidade se perdeu.
Finalmente, (4) não existe, de verdade, um simples certo x errado nessa briga. (Em momentos como este, eu realmente tendo a pensar que só há lados errados). Avaliar o ataque à Charlie Hebdo à luz de outros eventos como as Torres Gêmeas, a intifada, o Setembro Negro, Gaza, Holocausto, etc, dizer quem começou e quem não terminou, quem provocou e quem reagiu, perguntar quem matou mais, quem violou mais direitos humanos, nada disso ajuda. A perda de vidas em eventos de intolerância é sempre lamentável. Claro que o número imediato de vítimas produz em nós um certo impacto. E, quanto mais nos identificamos pessoalmente com elas, maior será o impacto. Mas não podemos perder de vista que a vida humana é, a despeito de sermos bilhões, singular. A morte é um evento triste porque encerra uma experiência única. Ou mais de uma. (Se você crê em reencarnação ou transmigração, tenha em mente que você não se lembra de suas outras vidas e, portanto, esta continua sendo uma oportunidade única de fazer as coisas direito). A morte intencionalmente violenta de quem quer que seja é, portanto, absurda.
Dito tudo isso, gostaria de passar para algo que também é óbvio, mas só depois que alguém fala. (Ou talvez não seja nada óbvio, talvez seja estupidez minha — escolha à vontade, afinal, a crítica também é uma forma de expressão e deve ser livre).
De modo geral, nos colocamos no lugar das vítimas, ao menos nos grandes eventos trágicos. É o que nos leva aos gestos de solidariedade mais simbolicamente importantes, ainda que simples e com pouco ou nenhum efeito prático. Je suis Charlie (“eu sou Charlie” em francês) é a bandeira do momento. E está muito próxima de ser uma daquelas unanimidades guarda-chuvas — olhando de cima ninguém sabe o quê eles protegem. Artistas profissionais e amadores, partidários das mais diferentes correntes ideológicas e, principalmente, quem acha que não está de lado algum trocaram seus avatares por memes e a hashtag, embora já tenha saído dos trending topics, continua entre as mais usadas no mundo. Provavelmente vai continuar assim por algum tempo.
Mas somos mesmo todos vítimas? Somos mesmo todos Charlie? Será que não temos, também, alguma semelhança com os algozes desse ato tão abominável? No fundo, não somos, também, bárbaros violentos e imperdoáveis? Não são perguntas gratuitas, muito menos tentativas de provocar polêmica barata. Apenas pense em todos os momentos de raiva que você enfrenta várias vezes ao longo de um dia ruim, de uma semana difícil no trabalho, na escola. Pronto! Você agora entende o que quero dizer.
Raiva, ódio, preconceito são coisas muito humanas. Querendo ou não, você carrega tudo isso aí dentro, mesmo que numa medida muito pequena. E, como qualquer característica humana, elas podem ser cultivadas. Pior ainda, elas se tornam auto-sustentáveis, se reproduzem por conta própria quando cultivadas por um período que não temos como quantificar. E há muita gente empenhada em fazer com que isso aconteça.
Para ilustrar melhor as coisas, vamos pensar numa história já bem conhecida de todos. Em Batman: A Piada Mortal (Souriez! e Rire et Mourir, títulos nas duas primeiras edições francesas), o Coringa tenta demonstrar que a distância entre um homem bom e um mau pode ser só um dia (muito) ruim. A sanidade do Comissário Gordon, contudo, sobrevive à experiência e saímos com a certeza de que o Coringa está errado, que o pior de todos os dias não é motivo suficiente para se justificar a maldade. Se ele se tornou um maníaco assassino depois de um dia (muito) ruim (e, convenhamos, o dele foi hors concours), o mais provável é que ele já estivesse próximo do abismo — o dia (muito) ruim até o colocou perigosamente no limite, mas o salto final foi dele.
Sejamos honestos: todos nós já pensamos, ainda que só por um instante, em matar ou morrer por muito menos do que Gordon e o Coringa viveram nessa graphic novel. Principalmente em matar. Claro, um instante de raiva não torna você um assassino. Elaborar mentalmente todo o rito e repassá-lo algumas vezes para torná-lo mais eficiente/divertido/rápido já é outra história. Mas — vá lá! — você não colocou o plano em prática. Então, você ainda não é mesmo um assassino. Qual é a diferença?
A diferença pode estar em um conjunto muito sólido de princípios morais e éticos. (Ao contrário do que Mestre Yoda ensina, ira não é necessariamente o caminho para o lado negro. Deixar-se levar por ela num ímpeto destrutivo sim. E talvez isso se torne um caminho sem volta em algum momento). Mas você não nasceu com esses princípios.
Nelson Mandela disse que pessoas podem ser ensinadas a odiar e amar. Aprender alguma forma de amor é, provavelmente, a trava-de-segurança mais eficiente contra a raiva. Mas ela tem um limite — a relação afetiva que você tem com o objeto de sua raiva momentânea — e pode se tornar um grande problema — ou não teríamos crimes passionais.
Uma segunda trava-de-segurança seria, então, a racionalidade. A vontade de agredir alguém pode ser muito forte, pode até ser legítima (do seu ponto-de-vista, que fique bem claro), mas você entende que essa não é uma solução aceitável para seu problema, porque compreende que existe um limite para a violação dos direitos de uma pessoa, mesmo que ela não tenha o mesmo respeito pelos seus. É uma questão de separar a justiça da vingança.
E existe a terceira trava (na prática, usada com mais freqüência do que as outras duas, mas não deveria ser assim), que é o medo do castigo. Mesmo no Brasil, país da impunidade, você só não matou alguém porque não quer ser preso. E por motivos muito mais rasos do que uma suposta ofensa a todos os seus valores mais caros.
Se essas três travas não significam nada para você, então, você só não teve motivo, meio ou oportunidade. Mas, não se engane, você está muito mais para Coringa do que Gordon. E sem precisar do dia desastrosamente ruim que eles tiveram.
Pense, agora, que muitos não têm só dias ruins, semanas ruins, mas uma vida inteira. E não só eles individualmente, mas todas as pessoas que eles conhecem e querem bem. E poucos têm a rigidez moral e a força-de-vontade de James Gordon. Nem todos se tornarão loucos homicidas, mas há uma boa chance de que ao menos alguns se tornem muito perigosos, especialmente se, em algum momento, passarem a pensar que sua condição, sua vida ruim, é o resultado de um sistema injusto. E o sistema é injusto. Sempre será. O problema é que nunca é fácil lutar contra ele. E é ainda mais difícil entender que lutar contra o sistema não é lutar contra pessoas, mesmo aquelas que se sentem confortáveis dentro dele.
Não se trata, aqui, de tentar reduzir a gravidade do acontecimento, nem de relativizá-lo. Como já foi dito no começo, entre tentar compreender e tentar justificar a violência há uma grande distância. Os coringas que atacaram o Charlie Hebdo poderiam ter todos os motivos para se sentirem injustiçados, talvez realmente fossem. Não muda o fato de que eles fizeram a má escolha de combater idéias (certas ou erradas) com violência e de usar inocentes como alvos. Mas entender que uma vida ruim pode nos colocar na beira do precipício da maldade, que um dia ruim pode facilmente nos lançar nele talvez seja importante para nos fazer refletir como nós, em nossa identificação com as vítimas, reagiremos a um ataque de ódio. Se não queremos que o ódio e a vingança se perpetuem, precisamos ter a coragem de abrir mão deles primeiro. Devemos responder com firmeza, mas “pela lei”, afinal, “temos que mostrar que do nosso jeito funciona”. Porque, se não funcionar, o que nos sobra é a barbárie.
P.S.: Você pode dizer que eu não estaria tão disposto a reagir pedindo paz e justiça se fosse diretamente ligado a uma das vítimas dessa barbaridade ou de qualquer outra. E você muito provavelmente estará certo. Isso não muda o fato de que ódio x ódio é uma estrada sem fim.
P.S.2: Sobre os terroristas mortos hoje na França: Talvez nem todas as mortes mereçam ser lamentadas, mas nenhuma deveria ser comemorada. A luta contra o ódio e a intolerância precisava que eles fossem legalmente presos, julgados e condenados, com todo o respeito e dignidade que eles negaram a suas vítimas. Infelizmente, há uma certa distância entre o que é necessário e o que é possível.
Puta. Texto.
Excelente!
Uau. Dos melhores txts q já li sobre o assunto. E li muitos. Parabens!
Charlie.. o santo do pau oco.
A mídia “livre” santifica Charlie Hebdo como icone da liberdade de expressão !!
Pois bem… esse jornaleco demitiu um cartunista(Siné) porque ele ironizou o filho de Sarkozy !
E mais… o chefe desse jornal… (a serviço dos neocons)… Philippe Val… acoberta o amigo dele (Patrick Font)… um pedófilo!!
Não era esse o foco, mas, vamos lá.
Sim, Charlie Hebdo tem uma série de problemas, é parcial (como são todos), muitas vezes comete o erro de ofender gratuitamente sem realmente contribuir para uma discussão, certamente merece boa parte dos processos judiciais que sofreu. E isso faz parte do jogo.
A liberdade de expressão, de fato, não significa liberdade de ofensa ou de incitação a alguma forma de violência. Mas a democracia oferece os meios para que os abusos cometidos em nome da liberdade de expressão sejam verificados e punidos.
Sim, a democracia ocidental está longe de ser perfeita e a ação de extremistas é uma evidência disso. O terrorismo acontece porque os extremistas não confiam (e há um certo grau de razão nisso) que o sistema seja capaz de corrigir as injustiças que eles acusam.
Mas meu foco não era falar bem ou falar mal da revista. Simplesmente apontar que nossa identificação automática e exclusiva com as vítimas é menos legítima do que pensamos.
Esse ataque ao Charlie fede a false flag!!
Stefano,
Como já disse Alan Moore:
“A principal coisa que aprendi sobre teorias da conspiração é que os teóricos da conspiração acreditam em uma conspiração realmente porque isso é confortável. A verdade é que este mundo é caótico. A verdade é que não há uma conspiração (…). A verdade é muito mais aterradora, ninguém está no controle. O mundo está à deriva”
Tão à deriva que acontecem absurdos como esse. Tão à deriva que há quem tente justificar um erro com outros.
No entanto, o direito à vida e à liberdade de expressão devem ser categoricamente respeitados. Se começarmos a tentar justificar o injustificável o que nos resta é realmente a barbárie, como disse o Quotista.
teoria da conspiração é 1 falácia pra tentar desmerecer quem contradiz versões duvidosas da história.
Os que não acreditam na versão oficial da morte de JFK foram chamados assim,…. mas depois pararam de serem chamados assim
Contradizer versões duvidosas da história se faz com pesquisa e pesquisa séria. Historiadores (os melhores, pelo menos) fazem isso o tempo todo: contestam versões oficiais e mentiras oficiais com pesquisa, com documentos e outros recursos, efetivamente comprovam o que dizem. O ofício do historiador é esse. Quando meramente se especula é que se está no campo da teoria da conspiração.
como diria o neil gaiman ” se nos gostamos da liberdade de expressão tambem temos que gostar do lado bom e ruim dela,se o artista não comete um crime ele deve ser respeitado como artista,independente do que nossa moral possa falar pois tudo vira desculpa para censura”
como pode ser visto no link abaixo em inglês,isso ele escreveu em 2008 antes dessa loucura toda,lá ele fala que muitas hqs dele e do alan moore foram quase censuradas diversas vezes por causa dos seus temas
http://journal.neilgaiman.com/2008/12/why-defend-freedom-of-icky-speech.html
Tragédias como esta não deveriam ser o estopim para reflexões sobre a extensão dos desígnios de uma liberdade de expressão ou uma reação violentamente exagerada contra alguma forma de publicação. Estes são temas inerentes à produção midiática, sendo que o respeito e o zelo para com a informação produzida deveriam ser mantidos a todo custo, oferecendo àqueles que não se identificam com determinada publicação o direito proporcional e coeso de resposta. Por outro lado, uma obra, quando se torna pública, ainda que seja de inteira responsabilidade de seus autores, de certa forma “foge” da meta inicial ao ser publicada, ou seja, ao ser colocada diante do escrutínio público, não há como o autor “controlar” o que as pessoas poderão interpretar daquilo que veem, que leem, que degustam, que sentem ou pensam, porque para cada par de olhos que entra em contato com a obra, há uma mensagem, uma interpretação, uma reflexão diferentes que se adequam ao ser – incluindo aqui os pressupostos da personalidade, da cultura da qual descende, de suas posições políticas e religiosas entre outros estratos sociais – de quem a contempla.
Se o texto acima comenta que existem certas travas de segurança que podem impedir ou atenuar tais ataques reativos contra a imprensa, seria necessário que esta mesma imprensa, ao invés de empreender uma caça às bruxas a uma espécie de fundamentalismo religioso que atira para todos os lados, fazendo com que “bons” e “maus” sejam pegos neste tiroteio verbal, expusesse estas concepções ao grande público ao mostrar que nem tudo é preto no branco mas que existem áreas cinzentas que necessitam de um olhar crítico e mais demorado para se chegar a uma conclusão. Desta forma, torna-se possível que mais camadas da história sejam conhecidas, e, numa tentativa de evitar uma condenação preconceituosa daqueles que comungam com a religião ou posição política que tem sido retratada e que também são contra qualquer tipo de violência contra os elementos humanos em uma relação de liberdade de expressão – às vezes, de maneira equivocada por certos analistas – nos principais jornais do mundo.
Posso estar enganado, mas “a imprensa” (como se ela fosse um corpo monolítico — e sabemos que não é) comete o erro de se apresentar como portadora da verdade, quando é, no máximo, a defensora de uma abordagem dos fatos. Poucos jornalistas compreendem e admitem isso. Menos ainda se pode esperar da multidão que tem sua opinião formada a partir das verdades veiculadas pela imprensa.
Ótimo texto.Parabéns Quotista.
Pingback: “Respeite minha opinião!”: liberdade de expressão na indústria dos quadrinhos | Quadrinheiros