Mulher-Maravilha versus Anti-Wokes

Mais uma vez, Tom King, o destruidor de infâncias e infantilidades dos fãs da DC Comics, desagrada o leitor cristão conservador de mais de 35 anos que compra gibi da Mulher-Maravilha.

Numa declaração recente, James Gunn, o chefe da renovação da DC Comics nos cinemas, jogou um balde de água fria nos fãs mais agressivos e puristas. Ele declarou que Tom King é um dos colaboradores mais importantes desse novo projeto de DCU, e que foi para King que ele mostrou o roteiro de Superman Legacy primeiro, pedindo sugestões. Além de obviamente supervisionar a adaptação de Supergirl: A Mulher Do Amanhã, que é baseada num quadrinho assinado por ele, Tom King vai meter a colher em todas as produções tocadas por James Gunn. Logo depois dessa declaração os comentários e os canais de influenciadores anti-woke da cultura pop (seja lá o que isso queira dizer) expressaram toda a sua decepção e morte da esperança no futuro dos personagens da DC na TV e no cinema.

Mas o que é tão terrível assim na forma como Tom King aborda os personagens e o cenário da histórias que escreve, que está causando tanto trauma, fragilidade emocional, choro e vontade de ficar em posição fetal, numa parte tão vocal e agressiva, e ao mesmo tempo, tão pequena do público que consome quadrinhos de super-heróis? O caso da nova série assinada pelo autor, Mulher-Maravilha, tem umas boas pistas para desvendarmos esse mistério dos mistérios (com spoilers)!

Na série, que está na edição número 4 nos EUA (ainda não chegou por aqui), a residência de amazonas em território norte-americano passa a ser considerada ilegal. Tal regra é estabelecida depois que a amazona Emelie, numa explosão de violência, mata dezenove homens num bar. Ainda que ela não tenha sido encontrada depois do crime para esclarecer as circunstâncias, a imprensa e a opinião pública se voltam contra as amazonas, classificando o episódio como ódio aos homens, levando muito rápido à conclusão de que estrangeiros que não comungam dos mesmos valores cristãos dos norte-americanos, devem “voltar para o país deles”. Na sequência as forças de segurança do país passam a perseguir, prender, deportar, e em caso de resistência, matar as amazonas. A mais importante delas, a Mulher-Maravilha, é atacada em peso pelo exército e sai ilesa.

A segunda edição mostra um paralelo entre a jovem Diana durante um torneiro em Themyscira (Ilha Paraíso), sendo pressionada a se submeter em nome da tradição e da senioridade de sua oponente, e o embate com o exército dos EUA. Nos dois casos, Diana não cede e vence sem tirar a vida de ninguém. Mas no primeiro caso a vitória dela é reconhecida pela adversária. Já no segundo, a derrota serve de alimento para o ressentimento do inimigo.

O novo vilão dessa nova fase da personagem é uma figura de autoridade absoluta que está por trás do poder político e militar nos EUA. Ele detém o Laço da Mentira (um artefato que indica que o Laço da Verdade é apenas um dos laços que existem e que podem haver outros). Ele usa o Laço da Mentira para convencer um soldado que lutou contra a Mulher-Maravilha de que a derrota fez com que ele sentisse a própria masculinidade abalada, que ver o exército ser derrotado por uma mulher foi uma humilhação que ele não poderia suportar. O soldado escreve uma nota dizendo que a amazona “tirou dele o direito de existir enquanto homem” e comete suicídio.

Na abertura da quarta edição, as falas da imprensa começam com uma manchete que associa a Mulher-Maravilha ao suicídio (como um bait para o público), e terminam reproduzindo o discurso de políticos conservadores que dizem que foi a Mulher-Maravilha que puxou o gatilho. Tanto no discurso de manipulação do vilão que emula as conversas em fóruns de incels que acusam as mulheres de todos os problemas emocionais que eles carregam, quanto no da radicalização da cobertura da imprensa, que dá muito espaço para declarações polêmicas de comentaristas, se escondendo atrás de uma fachada de isenção jornalística, mas apenas olhando os números da audiência, Tom King está fazendo uma crítica ao mundo que vivemos hoje.

Dos vários conteúdos produzidos por criadores anti-woke que odeiam o trabalho de Tom King, um que me chamou a atenção foi o de um ex-militar que viu no suicídio do soldado um desrespeito às forças armadas dos EUA. Segundo ele, o elevado número de suicídio entre os militares são um problema delicado, que ele atribui a fraqueza emocional (já que ele, por exemplo, que foi exposto a muita violência e situações terríveis, não tem pensamentos suicidas).

Infelizmente esse tipo de conclusão é muito comum e é reforçada pela maneira como os veteranos são tratados nos EUA. A maior parte da classe médica, da imprensa e da opinião pública vê os militares como heróis que merecem agradecimentos pelo seu sacrifício que, no fim das contas, faz dos EUA um país livre e democrático. Quando a taxa de veteranos que comete suicídio é quase 2 vezes mais alta que a da população civil, os estudos tentam encontrar causas genéticas, estresse, ansiedade, consumo de álcool e outras drogas, como causas ou pelo menos fatores de risco, mas não percebem o próprio militarismo como causa. O mesmo acontece com as forças policiais. O treinamento que muitas vezes envolve humilhações, a dessensibilização necessária para que esses indivíduos possam justificar pra si mesmos o ato de tirar a vida de um outro ser humano, a proximidade com o crime e as possibilidades concretas que eles têm de passar por cima das regras sem que isso tenha consequências, já que são vistos de forma tão condescendente pela sociedade, nunca são considerados como fatores de risco para o adoecimento mental e o suicídio.

E nessa dança entre aqueles que se reprimem de forma violenta (incels, etc) e as organizações que são responsáveis pela repressão (o Estado, as forças militares, etc.), a imagem da Mulher-Maravilha é sim desconcertante. Na terceira edição ela chega a um prédio do governo que serve de escritório secreto da divisão especial de militares que a atacou. Ela vai até o recepcionista para saber em qual andar fica o escritório. Ele não olha pra cima e reponde que essa divisão não fica no prédio, que ela deveria ter ligado antes pra não perder a viagem. Ela insiste e quando ele finalmente decide olhar o rosto da pessoa que está falando com ele, a visão o deixa desnorteado. Um misto de medo, admiração, tesão, alegria, insegurança. Ele só consegue dizer pra ela a informação que ela pediu.

Vale mencionar a arte sempre incrível do Daniel Sampere. E pra quem achou que não ia ter cultura woke no DCU : achou errado, otário!

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About Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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