Os problemas do Frankenstein de Junji Ito

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Visão unilateral e curta duração tiram o impacto que a história original carrega.

Em 2021 foi anunciado pela editora Pipoca e Nanquim o lançamento da adaptação em quadrinhos de Frankenstein produzido por Junji Ito, um dos mais famosos mangakás de terror. A expectativa, portanto, era enorme, pois além de ser um autor de renome, a obra venceu o prêmio Eisner de Melhor Adaptação de Outra Mídia e, somado a isso, possui o peso da obra original que se tornou um clássico da literatura universal.

O mangá foi publicado originalmente no Japão em 1994, no momento de publicação o autor ainda não era um fenômeno internacional, o que explica o motivo do quadrinho ser publicado tardiamente no ocidente. Seu prêmio de melhor adaptação só foi entregue no ano de 2019 e foi o que fez a obra ganhar a atual atenção internacional. Os desenhos de Ito são de tirar o fôlego e possuem o clima ideal para narrar essa história, ao observar as capas, design de personagens e cenas a sensação é de que essa era a grande chance de Frankenstein nos quadrinhos.

Contanto, os elementos que poderiam formar de fato a melhor das adaptações acabam sendo frustrados pelo número de páginas, unilateralidade da história e uma adaptação bastante inverossímil de certa parte do livro original. O quadrinho é bastante curto comparado à história original e os eventos acontecem de maneira corrida e sem muita emoção. Do início do quadrinho até o momento que o cientista Victor Frankenstein inicia a construção do monstro são menos de 40 páginas. É compreensível que seja uma adaptação, porém essa agilidade retira um dos elementos centrais da obra original que mescla com o segundo ponto que citei que é a unilateralidade da história.

Uma interpretação possível do livro de Mary Shelley Frankenstein ou o Prometeu Moderno é a de que somos o monstro de Frankenstein. Estamos soltos em um mundo sem emoções e contexto que nos exige diversos padrões (estéticos, intelectuais etc.) e quem não os possui é excluído e maltratado. Tudo isso somado à visão de que o criador do monstro o abandonou e ele já não tem mais esperança de redenção e nem algum amor de seu criador que se eximiu de responsabilidades em relação à sua criatura. A partir disso temos uma visão de que Victor Frankenstein é unicamente um ser covarde e egoísta que nada tem a ver conosco, os ofendidos pelas questões de nossa sociedade e do mundo que sofremos como o monstro, porém isso é um recorte feito do livro, que permite outras interpretações.

Dois fatos demonstram que essa parece ter sido a abordagem escolhida por Junji Ito: o tempo para apresentar e humanizar Victor Frankenstein e as ilustrações do protagonista que em grande parte das cenas possui um olhar sombreado com certo tom de arrogância e maldade imbuídos também em suas palavras e sentimentos. Essa unilateralidade na abordagem torna a adaptação exponencialmente mais pobre em conteúdo do que o livro original, pois na versão de Mary Shelley vemos Victor Frankenstein em diversos conflitos psicológicos, seu contexto infantil em detalhes, suas dúvidas, desejos, erros, acertos etc. A autora primeiro constrói o personagem e só depois apresenta seus erros e mazelas para que seja possível a identificação com o cientista.

O livro cresce muito quando conseguimos observar nossos narcisismos e egoísmos no protagonista e seus sofrimentos. Ao mesmo tempo em que sofremos de uma falta de propósito, abandono e de todo mal inflingido por nosso tempo também temos profundos ímpetos de nos tornarmos famosos, ricos ou de obter diversos outros tipos de prazer baseados apenas em nossas próprias paranoias e egoísmos. Levando às últimas consequências nossa busca por prazer, alegria e orgulho, estamos na busca de, assim como Victor, nos tornarmos o Deus que nos abandonou sem nem entender muito bem como. Tanto o monstro em seus sofrimentos e Victor em seu extremo narcisismo são peças fundamentais da constituição da personalidade das pessoas após a modernidade e me parece bastante incompleto construir a obra baseando-se apenas no sofrimento e não o que causamos ao mundo com nossos desejos e ímpetos.

O último ponto que corrobora para essa visão de vítima da modernidade como interpretação do livro original é a adaptação que Junji Ito faz em relação a história do livro original. Na adaptação o amigo de infância de Victor, Clerval, decide ajudar o amigo na construção de uma “monstra” a pedido do monstro para que ele possa viver em paz na companhia de alguém. Victor e Clerval constroem o corpo, porém falta a cabeça da monstra e depois de muita procura de uma cabeça em estado de conservação aceitável, o monstro entrega a Victor a cabeça de Justine, personagem que trabalhava na casa dos Frankenstein e que morre por culpa de Victor e do monstro, causando assim culpa em Victor.

Para Victor utilizar a cabeça de Justine é inaceitável, mas Clerval o convence, argumentando que talvez dessa forma seja possível trazer Justine de volta à sua antiga consciência. Victor aceita e quando a monstra vem à vida, ela está atordoada com seu nascimento e ataca tanto o Victor quanto o monstro que estava também aguardando o nascimento dela, que em seguida a mata e jura eterna vingança por Victor ter criado um ser que na percpeção do monstro foi criado pelo cientista para exterminar sua vida.

Essa cena inteira não faz sentido, primeiro que trazer Justine de volta naquele corpo constituído de pedaços de corpos seria um sofrimento maior do que a morte e Victor já viu que quando se cria um ser do zero ele aparece com uma consciência totalmente nova. O pior é que tudo isso é dito na história, mas Clerval convence Victor que talvez eles possam ensinar a monstra a ser boa como Justine e assim eles a honrariam, justificando a atrocidade de utilizar a cabeça de Justine na composição da monstra. Outro aspecto é como o monstro fica revoltado com Victor pela monstra tê-lo atacado, sendo que ela também ataca Victor, o que torna a suposição do monstro sem sentido. Por fim, a impressão que passa é que o autor usa de forma muito conveniente a perspicácia ou estupidez dos personagens na história.

Assim essa pequena saga sem sentido que não está no livro original parece se conectar com a visão citada de que o Victor é mau e o monstro bom, pois com o monstro sentindo que o Victor tentou matá-lo, agora ele possui uma justificativa honesta para se vingar de seu criador e matar toda a sua família sem parecer tão horrível assim. No livro original tanto a benevolência do monstro quanto a maldade de Victor são mais difusas e possuem camadas muito menos claras de julgamento.

Infelizmente o quadrinho adota uma postura maniqueísta na interpretação da obra original e constitui uma história rápida e bastante rasa. Os desenhos de Ito são incríveis e a expectativa era bastante alta para esse material que sempre aparece sendo muito elogiado, porém ele não é muito honesto em relação ao livro original e nem muito coerente como história. Não existe problema em mudar certas partes, mas uma interpretação livre de um livro com tanto peso corre o risco de cair em tais armadilhas que empobrecem a adaptação. Vale a pena ler talvez como um complemento ao livro original ou para conhecer a partir de um novo ponto de vista, mas tudo o que torna Frankenstein o romance impactante que é não está no quadrinho e pode desapontar quem procura uma experiência artística, moral e filosófica tão rica quanto ou próxima do que foi pensado e criado por Mary Shelley.

Sobre John Holland

Procurando significados em páginas de gibi enquanto viaja pelos trilhos do conhecimento e do metrô. Sempre disposto a discutir ideias e propagar os quadrinhos como forma de estudo, adora principalmente a Vertigo, está sempre disposto a conhecer novos quadrinhos e aprender o máximo de coisas possível!
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Uma resposta para Os problemas do Frankenstein de Junji Ito

  1. sergiorike disse:

    Ao meu ver a visão unilateral e a curta duração da HQ é porque tem os desenhos explicando a história. (Zoeira)

    Concordo com o autor. Pra que trazer Justine de volta a vida? Em todo caso creio que é por isso que o monstro ficou revoltado com Victor. Pra quê fazê-la voltar à vida na forma de uma MONSTRA?

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