Afinal, pelo que luta o Superman?

Aos puristas, um aviso: o slogan não nasceu nos quadrinhos e sim no programa de rádio do personagem, no início da década de 40.

Truth, Justice and the American Way

Verdade, Justiça e o Estilo Americano

Os Estados Unidos lutavam contra os países do Eixo no contexto da 2ª Guerra Mundial, e, em seguida, travaria um conflito contra a União Soviética, a chamada Guerra Fria. Ambos iam muito além do aspecto militar e, não seria exagero dizer, um dos principais campos de luta era o ideológico, a disputa por corações e mentes.

Na época fazia sentido o Superman lutar por Verdade, Justiça e o Estilo Americano, que no contexto mencionado significava a luta pela democracia e das liberdades individuais em alinhamento ao governo dos Estados Unidos, em contraposição ao fascismo e, em seguida, ao socialismo.

Porém muita coisa mudou dos anos 40 para cá, sobretudo com a Guerra do Vietnã (1955-1975), momento em que a opinião pública dos Estados Unidos ficou majoritariamente contra a decisão do Estado americano de permanecer na guerra, marcando um dos maiores (se não o maior) fracassos militares dos Estados Unidos. Fracasso não só militar, mas político e ideológico.

Oportuno lembrar que no desenho As Novas Aventuras do Superman (1966-1970) o mote era “Verdade, Justiça e Liberdade”, talvez um indicativo que o American Way era dúbio no contexto do Vietnã e era necessário dizer exatamente o que o Superman defendia, sem margem para interpretações equivocadas.

Em 1978, no filme de Richard Donner, ainda referência para boa parte dos criadores e público, o slogan volta à tona tal qual na década de 40, em todo seu esplendor.

Como escrevi em artigo em co-autoria com Fernando M. Forattini:

“Se, nos anos de 1960, até boa parte dos anos de 1970 os EUA passavam por contestações sobre autoridade política, imperialismo e patriotismo, no final dos anos de 1970, com as crises econômicas e políticas, haverá mudança de ideia. A própria cronologia do filme, com muitos elementos incorporados pelos quadrinhos futuros, servirá ao cenário político. Há importante hiato na história de Clark Kent. Ele estava ausente durante todo os anos de 1960 e parte dos anos 70. Essa é a época de sua adolescência, em que o Superman não marca sua presença no mundo, pois estava em treinamento por Jor-El. Ele retorna à cena somente em 1978, com superpoderes e seus “valores americanos” intactos numa cidade descrita como caótica, suja e confusa. A ideia do filme é mostrar que Superman traria os valores tradicionais, do meio rural,de volta.”

Ao final dos anos 80 e início dos 90 um herói que defendesse o “American Way” fazia menos sentido ainda. Com a queda da União Soviética, as fronteiras do capital foram virtualmente expandidas em escala global. Na série dos anos 90, Lois e Clark, o Homem do Amanhã defendia “Verdade e Justiça”, e no filme de Bryan Singer de 2006, não é mencionado o lema na íntegra, ocultando justamente o American Way, embora fique implícito para quem conhece um pouco sobre o personagem.

Em um mercado globalizado há menos sentido em pensar um herói que defenda o American Way alinhado ao governo dos Estados Unidos, e isso foi bem explorado em Action Comics #900, de 2011. Na história, roteirizada por David S. Goyer, Superman envolve-se em um incidente no Teerã, Irã, e diz, ao final da história, que renunciará à cidadania americana pois suas ações não podem estar atreladas à política externa dos Estados Unidos, e ele deve ajudar a todo o planeta.

A propaganda e política externa americana conseguiu associar o American Way a uma série de valores universalmente desejáveis como democracia, progresso técnico, desenvolvimento e liberdades individuais, o melhor que o liberalismo pode oferecer, ideias de fato sedutoras, mas não sem uma dose considerável de demagogia.

A imagem do Superman alinhado aos interesses governamentais foi cunhada durante o contexto da 2ª Guerra Mundial e da Guerra Fria. Nesse período, American Way eram os valores acima assinalados, com o alinhamento à política externa americana.

No século 21, após a queda das Torres Gêmeas, a Guerra do Iraque, a ocupação do Afeganistão e ao mandato de Trump, a ascensão da China como potência política e econômica e o mercado globalizado, manter o Homem de Aço ligado ao American Way vinculado ao governo americano não é só um mau negócio, mas também não expressa mais o que o personagem representa.

Sensível a esse contexto, a DC oficializa a mudança do lema de seu maior personagem:

Truth, Justice and a Better Tomorrow

Verdade, Justiça e um Amanhã Melhor

Nas palavras de Jim Lee:

“Superman tem sido um símbolo de esperança que inspira pessoas no mundo todo, e é esse otimismo e esperança que o move para frente com seu novo lema”

O novo slogan apenas evidencia uma mudança que já operada no personagem há alguns anos, mas é de extrema importância para associá-lo a valores que podem ser universalmente aceitos, alinhados a um mundo cada vez mais conectado para além das fronteiras nacionais. Aliás, como mobilização do regime de imagens diurno e do arquétipo do herói, mais especificamente do herói solar, o Superman sempre foi maior que uma nação, mais que um produto.

Parece que finalmente Kal-El poderá ser, de fato, o Homem do Amanhã.