Quem é o Diabo?
O Diabo em alguns momentos é inserido na cultura pop como um elemento de razão e racionalidade, também como uma espécie de adversário que lhe apresenta novas ideias, e te fazer encarar racionalmente sua personalidade e o mundo à sua volta, além de promover provocações sobre o status quo do mundo e verdades antigas. O elemento da razão não é proveniente do diabo, porém ele é a personagem sintetizadora da exacerbação da materializadade atrelada a paixões, o que não pode ser definido completamente como bom ou mau, o Diabo deve ser utilizado, mas com cautela. Essa personagem caminha com tais características por Sandman, Promethea, na obra de Fiódor Dostoievski e até de Raul Seixas.
Lúcifer de Sandman deve ser o caso mais famoso dentre as encarnações desta personagem na cultura pop, tanto por possuir histórias de qualidade, algumas fases em quadrinhos e até mesmo uma série de TV. A personagem de Neil Gaiman nunca se apresentou como alguém unicamente malévolo e irracional, um ser que busca acumular almas; inclusive o próprio acha tal função uma bobeira. Mas onde Lucifer pela primeira vez escancara sua racionalidade com relação a humanidade é na famosa cena em que Morpheus vai ao inferno e Lúcifer diz a ele que a humanidade deve se responsabilizar por seus atos, diz que ele não influencia ninguém a fazer nada.

É possível observar já a personalidade questionadora de Lucifer, tanto no fato que ele observou que a humanidade deve se responsabilizar por seus atos, atingindo também o leitor da obra, que se sente instigado a repensar suas próprias atitudes assumindo responsabilidade e culpa por cada um de seus atos. Isso inclusive reberbera por como você encara as pessoas a sua volta, pois existem pessoas que acreditam de fato nessa influência mísitica e pessoas que não acreditam, e os atos delas serão justificados de acordo com suas crenças sejam elas baseadas nas leis do homem ou da religião.
Raul Seixas deixa claro em “Rock do Diabo”
Enquanto Freud explica as coisas
O diabo fica dando os toque
Mamãe disse a Zequinha
Nunca pule aquele muro
Zequinha respondeu mamãe aqui tá mais escuro
Na música o diabo aparece como elemento de cisão com o seguro, com o statuos quo que ajuda a inclusive manter uma certa ignorância em relação ao mundo a sua volta. O diabo da o toque para que exista o desejo de pular o muro do que lhe é imposto como verdade, o muro da ignorância quanto às possibilidades. O diabo de Raul Seixas é uma certa pulsão da vida para que o ser humano se mova e não esteja satisfeito com o que já lhe é conhecido.
E essa certa pulsão ao desconhecido pode ser observada também no livro “O Caminho do Tarot” de Alejandro Jodorosky e Marianne Costa. Nele, o autor associa palavras-chave para cada um dos arcanos maiores do tarot, e no caso do diabo ele utiliza palavras como: tentação, desejo, pulsão, criatividade, apego, entre outras.

Segundo Jodorosky
Os três personagens são coroados por chifres, assinalando esse Arcano como arcano da paixão antes de tudo: paixão amorosa, paixão criadora. Esta carta contém todas as potências escondidas do inconsciente humano, as negativas e as positivas. É também a carta da tentação: um chamado à busca do tesouro oculto, da imortalidade e da energia potente enterrada no psiquismo, necessária a toda grande obra humana.
Esse chamado do tesouro oculto recai sobre todas as questões humanas sejam elas de acumulo financeiro, busca de conhecimento ou até mesmo de sensações ainda não descobertas pelo ser humano.

De fato, existe uma série de fatores considerados altamente benéficos para a espécie humana. Seja a exploração de novos recantos da mente através de ideias ditas “transgressoras”, o acúmulo de conhecimentos científicos ou a própria satisfação pessoal de novas paixões e sensações que tornam os momentos de vida mais agradáveis. Apesar destes aspectos serem imediatamente positivos, eles também podem virar para polos negativos.
Como dito ainda por Jodorosky
...Evidentemente, este Arcano pode também representar um contrato fraudulento, na tradição do mito do Fausto, os desvios e degenerações da sexualidade, o infantilismo, a trapaça, os delírios mentais, a rapacidade econômica, a glutonaria, e todos os lastros autodestrutivos.
Na edição 12 de Promethea escrita por Alan Moore, o autor se propõe a dar uma versão pessoal ao ciclo da história universal humano por meio dos arcanos maiores do tarot. Em certo momento o autor passa pela carta “temperança” em que Moore atualiza o nome para “arte” e fala sobre a ascensão da racionadade e da prosperidade.
ciência, arte e beleza, nesse momento, ressurgiram como Deuses no firmamento. O homem sobreviveu ao mais duro teste e as luzes surgiram por todo o Oeste. Consciência floresceu, prosperou a razão. Reviveu-se a civilização. Deixe os poetas a cantar e inspirar! Deixe a paixão de cada lira ressoar!

A carta seguinte a temperança que apresenta tais benefícios a sociedade humana é a carta “O diabo”, e a própria Promethea indaga:
Não compreendo. Se a renascença foi uma revitalização da cultura, como pode a próxima carta ser o diabo?
E pra ela é explicado que tudo depende de como interpretamos esta carta.
O mundo espiritual deixamos de lado, enquanto o reino material é o que há de fato.
Então satã a cristo oferece, desfraldado, a riqueza do mundo materializado. O diabo é, assim, de todo o jeito. O feroz materialismo em miragem feito.
Pois a renascença traz banhada em luz a era da razão, que a tudo seduz. A ciência sobe ao palco e acena, enquanto Deus sai de cena.

Ou seja, a ascensão da razão e da ciência finalmente abriu margem para questionamentos profundos a respeito de Deus e da espiritualidade. Não é o ato de dizer e pensar que acredita em Deus que define a influência de Deus sobre a humanidade, o que define agora é a ascensão da materialidade, que gera a necessidade de explicar cada um dos fatores da existência por meio dos estudos e leis da natureza. Ou seja, as ideias que satisfaziam a humanidade espiritualmente perderam grande parte de seu valor e passou a valer muito mais a era da ciência e da razão.
Portanto, chegamos à morte de Deus anunciada pelo homem louco de Nietzsche em “A Gaia Ciência”, nós matamos Deus e a razão e racionalidade passaram a ter valor inestimável sobre a humanidade. O autor Fiódor Dostoievski era uma pessoa temerosa quanto a perda dos valores espirituais na sociedade principalmente do “não matarás”. Sua obra mais famosa, Crime e Castigo (onde acompanhamos o antes, durante e após de um assassinato pela visão do assassino), é quando o autor eleva à última potência a perda de poder deste mandamento. Rodion Romanovitch Raskolnikóv faz coisas como atribuir valor à sua vítima, ele a considera uma pessoa que faz mais mal que bem no mundo, e isso ajuda a seguir seu plano, porém em paralelo a isso, até o fim a personagem diz que acredita, sim, em Deus. Raskolnikov acredita que acredita em Deus, mas seu juízo moral e suas convicções materiais já são muito mais profundas e influentes do que sua doutrina espiritual e religiosa, que deveria acima de tudo guiá-lo nesta decisão.

Dostoievski em seu último romance “Os Irmãos Karamazov” coloca Ivan Fiodorovitch Karamazov em um delírio, o profundo materialista dos irmãos sofre de tal delírio por ter agido de forma ardilosa para suscitar a descrença no “não matarás” sob o assassino de seu pai. O delírio é uma conversa de Ivan com o próprio diabo, e o diabo aparece para Ivan como a imagem provocadora que o faz lidar diretamente com seus desvios morais, principalmente a suscitaçã do fim do “não matarás” sob o assassino de seu pai. Porém em certo momento Ivan e o Diabo entram na discussão sobre essa era da ciência e perda de força de Deus no mundo, e inclusive o diabo começa a lhe falar sobre a possibilidade da existência de um mundo melhor através da racionalidade.
O diabo diz:
…Tolos, não me consultaram! A meu ver, nem é preciso destruir nada, mas só e unicamente destruir na humanidade a ideia de Deus, eis de onde é preciso começar! É daí, é daí que se precisa começar – oh, cegos, que nada compreendem! Quando a humanidade, sem exceção, tiver renegado Deus (e creio que essa era – um paralelo aos períodos geológicos– virá), então cairá por si só, sem antropofagia, toda a velha concepção de mundo e, principalmente, toda a velha moral, e começará o inteiramente novo. Os homens se juntarão para tomar da vida tudo o que ela pode dar, mas visando unicamente à felicidade e à alegria neste mundo. O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. Vencendo, a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças no gozo celestial. Cada um saberá que é plenamente mortal, não tem ressurreição, e aceitará a morte com altivez e tranquilidade, como um deus. Por altivez compreenderá que não há razão para reclamar de que a vida é um instante, e amará seu irmão já sem esperar qualquer recompensa. O amor satisfará apenas um instante da vida, mas a simples consciência de sua fugacidade reforçará a chama desse amor tanto quanto ela antes se dissipava na esperança de um amor além-túmulo e infinito” … e assim por diante, tudo coisas desse gênero. Um primor!

Lucifer de Neil Gaiman é um dos maiores prenúncios provocativos dos quadrinhos, e isso foi se repetindo por outras histórias. Raul Seixas já brinca mais de perto com o Diabo, Jodorovsky talvez seja o autor mais ponderado sobre como devemos lidar com essa personagem (pelo menos dentro do tarot). Jodorowsky vê grande valor nessa pulsão criativa, nessa tentação que o diabo apresenta, mas também entende que ele pode te jogar em um polo negativo de desespero por satisfação material. Já Moore e Dostoievski começam a apresentar uma derrocada humana por essa perda de influência espiritual, criada por essa busca exacerbada da razão, em que a humanidade procura nela a resposta para uma melhor existência. Agora vai do coração e mente de cada ser humano tentar entender o papel desta personagem em sua vida, e pensar o quanto ela precisa te acompanhar e em quais momentos. A ascensão exacerbada existe, mas a necessidade de descoberta do novo, parece tão importante quanto.
A inserção do Diabo em uma discussão implica que também se está discutir sobre Deus. Ou, em outras palavras, não há Diabo sem um oposto complementar. É uma discussão civilizacional esta, que ainda travamos; um diálogo inconcluso. O Diabo, o diabolós, o rival, tornou-se imprescindível logo no alvorecer do cristianismo. Agostinho preocupava-se, Tomás de Aquino vai tangenciar o tema sem nunca o abordar de frente. E isto vindo de um autor de obra monumental! O Lúcifer de Gaiman, é minha suspeita, é herdeiro do demônio que conversa longamente com Adrain Levekhun no Fausto de Thomas Man. No campo local, lusófono e brasileiro, talvez herdeiro do demônio invisível mas sempre presente no Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. Sempre oculto, no “meio do redemunho”.