

Quando comecei a ler quadrinhos super-heróicos, conhecia só os mais populares, que em algum momento tinham virado desenho animado (ou desanimado, no caso daquela série da Marvel que era basicamente filmagem de HQ). Descobrir o
Demolidor foi uma das coisas mais empolgantes da minha adolescência. Encontrar os formatinhos
Demolidor Especial (ed. Abril, outubro/1988, junho/1990, agosto/1991) nas várias peregrinações aos sebos do Centro consolidou o
Homem-Sem-Medo entre os meus favoritos, mais até do que os
X-Men! — isso me fazia parecer um herege diante dos (poucos) amigos quadrinhófilos na época. Particularmente, por causa do primeiro volume da série, cresci acreditando que Frank Miller era um dos maiores roteiristas de todos os tempos — o que durou só até eu ler
O Cavaleiro das Trevas 2 (
há quem goste) e desabou de vez depois que o tempo e o amadurecimento (tá…) me fizeram entender o conteúdo político d’
O Cavaleiro das Trevas (mas continuo achando uma boa história; é fascista, falacioso, descaracteriza o
Morcegão, mas é uma boa história — #prontofalei).

Vindo de uma sólida formação cristã protestante, a aparência do
Demolidor era uma coisa muito estranha pra mim. Eu já estava acostumado com heróis alienígenas, cibernéticos, mágicos, mutantes, etc, e até com heróis disformes ou não-humanóides. Mas o visual do
Demolidor realmente me causava estranheza: como assim, um herói que se veste de diabo?! (E eu realmente acreditava que o
Motoqueiro Fantasma fosse um vilão até ler pela primeira vez). Mas curti o
Demolidor, assim como mais tarde me acostumei a
Etrigan,
Desafiador,
Spawn,
Hellboy e outros heróis demoníacos (se é que podemos chamar
Etrigan de herói).


Se você tem mais-ou-menos a minha idade e veio de um formação religiosa mais tradicional, é bem possível que tenha passado por esse mesmo estranhamento. Talvez seus pais ou avós pensassem que todos aqueles desenhos violentos fossem má-influência pra você. Eles certamente confiscariam todos os seus gibis e colocariam você de castigo por meses quando vissem que entre os heróis que você tanto admirava havia um cara com cabeça de caveira flamejante e que batia nas pessoas com correntes. Convenhamos: a noção <bom = bonito x mau = feio> até hoje tem muita força no senso comum. No Brasil, onde o cristianismo (em suas várias correntes) é absolutamente dominante, pouca gente duvida que o Diabo seja mau.

A consolidação da teocracia cristã no final da Idade Antiga para o início da Idade Média foi marcada pela aproximação, apropriação e desqualificação de toda a religiosidade pagã. Constantino procurou dar à liturgia cristã uma aparência mais próxima ao culto público romano, de modo que seus súditos assimilassem mais rapidamente o processo de cristianização do Império. As festas pagãs mais importantes tiveram seu significado substituído pelos valores, marcos e heróis (mais conhecidos como santos) da cristandade quando a Igreja percebeu que não havia como fazer o povo parar de comemorar certas datas. E o que não pôde ser cristianizado foi mandado pro outro lado. Demônios se enquadram nessa terceira categoria.

Dentro da tradição hebraica, o mundo é assombrado por maus espíritos. Eles podem enlouquecer pessoas, torná-las violentas e incontroláveis, provocar doenças, são enganadores, cruéis, sádicos. Não se pode esperar outra coisa dos servos de Satanás. Entre os séculos III e I a.C., os tradutores responsáveis pela
Septuaginta (versão grega das Escrituras hebraicas) usaram
daímon (demônio) como tradução para
se’irim (seres peludos — divindades semelhantes aos sátiros) ou
shedim (maus espíritos). No dia-a-dia, os judeus usavam essas duas palavras para se referir genericamente aos deuses e ídolos de outros povos, função que foi igualmente associada ao termo grego e que os cristãos simplesmente continuaram a usar.
Mas o que os gregos entendiam quando se falava em demônios? Um documento médico grego do século V diz que demônios maus induziam mulheres neuróticas ao suicídio. Sim, você leu corretamente: demônios maus. Se esse médico achou necessário especificar que isso era coisa de demônios maus, podemos concluir, então, que ele acreditava na existência de demônios bons.


Na tradição grega arcaica, demônios eram seres presentes na natureza — habitavam os rios, as pedras, as árvores —, imateriais como os deuses, mortais como os homens. Como muitas das criaturas fantásticas gregas, demônios não eram inerentemente bons ou maus; eram volúveis e caprichosos. Camponeses faziam pequenos rituais, oferecendo presentes aos demônios para que protegessem (ou não prejudicassem) a colheita e os animais. Homero se referia a eles como espíritos menores, potencialmente perigosos. Xenócrates afirmava que um demônio é bom ou mau dependendo das circunstâncias. Então, era melhor mantê-los satisfeitos.

Hesíodo dá uma outra visão sobre demônios: mortos. Em
O Trabalho e os Dias, os mortos da Era de Ouro (dos gregos, não dos quadrinhos) tornam-se demônios e, por vontade de Zeus, vagam pelo mundo para fazer o bem aos vivos, protegê-los de perigos, abençoar seu trabalho. Os homens não podem vê-los, mas sentem sua presença e percebem sua ação. Demônios de heróis recebiam santuários para que não precisassem vagar como demônios comuns. As pessoas iam até eles e pediam seus favores.

Platão dá a entender que havia, em seu tempo, uma crença generalizada no demônio pessoal, que acompanhava e protegia uma pessoa desde o nascimento até a morte, mas não podia dirigir suas decisões. Ainda segundo Platão, Sócrates, seu mestre, dizia que seu demônio o advertia quando estava para fazer uma má escolha. (Mais ou menos como aquele anjinho que fica no seu ombro, mas sem o diabinho do outro lado). Os gnósticos neoplatonistas acreditavam que demônios fossem divindades inferiores, emanações do
logos (razão) universal tão limitadas que eram acessíveis aos homens, mas ainda sábias o bastante para guiá-los — Platão acredita que
daímon venha de
daêmôn (saber), embora os estudiosos hoje acreditam que a origem seja
daiō (distribuir sortes). Já Heráclito acreditava que o demônio de cada pessoa era seu próprio caráter.

No período Helenístico, os gregos faziam distinção entre
agathodaimōn (espírito nobre) e
kakódaimōn (espírito maligno). Diferentemente dos demônios pensados até aqui, esses demônios tinham a capacidade de entrar no corpo das pessoas, assumindo o controle de suas palavras e ações. Esse estado de ter um bom demônio dentro de si era chamado de
eudaimonia e era associado ao bem-estar e à felicidade. O ritual mais comum para se chegar à
eudaimonia consistia em beber. E beber muito. (Em inglês,
spirit pode ser espírito, mas também é qualquer bebida alcoólica destilada. A idéia deve ser a mesma dos gregos).
A Septuaginta foi produzida sob influência direta do período Helenístico e, portanto, reflete essa concepção de demônios opostos. Entre os judeus helenizados, o termo aggelos (mensageiro) passou a designar os emissários espirituais de Deus, que incorporaram as características dos bons demônios. Já o termo daímon passou a ser visto como sinônimo do mau demônio, que acumulou, também, todos os aspectos do politeísmo greco-romano que o cristianismo não pôde assimilar, inclusive os ritos orgiásticos e a embriaguez deliberada. Isso explica por quê, embora o prefixo eu sempre indique uma coisa boa, eudaimonia (endemoniamento) hoje é uma coisa muito ruim.

Os gregos não costumavam fazer representações artísticas de demônios. Então, a aparência de heróis demonificados, endemoniados ou demônios mesmo poderia ser estranha para eles, mas a idéia certamente não. Embora não tivessem papel ativo, demônios eram essenciais à jornada heróica. Eles protegiam e orientavam os heróis, fossem lendários ou verdadeiros. Alexandre, o Grande, por exemplo, atribuía seu sucesso na unificação dos gregos e na expansão de sua cultura ao seu demônio. Era esse demônio que era adorado no culto público alexandrino, não a pessoa do próprio imperador, como geralmente se pensa.

Juntemos os elementos: demônios inspiram e capacitam pessoas para atos heróicos e, às vezes, recebem os créditos por isso. O traje do
Demolidor não é só um disfarce. Dentro e fora da história, ele é, obviamente, uma referência ao imaginário cristão medieval do Diabo como o responsável por punir os maus (não nos esqueçamos que
Matt Murdock é irlandês e, portanto, católico — não-praticante, mas é). Mas o sentido menos óbvio de seu traje é que ele evidencia seu demônio interior. Em escala muito menor, o traje do
Demolidor tem a mesma função que o culto público alexandrino: mostrar que há algo sobre-humano, invisível, mas sensível, que move suas ações e que tira dele todo o medo para lançá-lo no coração dos criminosos.

O
Demolidor é um herói demonificado. Resta resolver a questão dos heróis endemoniados e dos que são demônios (ou fantasmas, monstros, vampiros, qualquer criatura tradicionalmente associada ao mal). Para isso, vamos recorrer a um dos aspectos da jornada heróica: a redenção. O papel do herói envolve sempre um ato de redenção, ou seja, salvação. Pagar pelos pecados, usar a maldição para proteger os inocentes, punir os maus em nome do Diabo…
Costumamos pensar no herói como aquele que salva outras pessoas, mas muitas das jornadas heróicas têm início a partir da necessidade de redenção do próprio herói. Hércules e seus 12 trabalhos para pagar pelo assassinato da esposa e filhos é o caso mais famoso da mitologia clássica.
A jornada heróica muitas vezes parece ser um desígnio divino sobre os mortais. E demônios, por mais poderosos que sejam, continuam sendo mortais se comparados aos deuses. Dentro da tradição judaico-cristã, demônios são anjos caídos. Se existe alguém que compreende o preço da queda são eles. E, justamente por isso, alguns deles realmente buscam redenção, supondo que haja um caminho para isso. Esse parece ser o argumento por trás de tantos heróis demônios ou endemoniados nas HQs.
Longe de querer discutir se realmente existem demônios e qual seria sua natureza, o interesse aqui é pensar sobre a existência e longevidade de tantos heróis demoníacos nos quadrinhos. Acredito que a resposta esteja nessa combinação de sede de justiça e esperança de redenção. Agrada-nos a idéia de que os maus sejam punidos de corpo e alma, ainda mais se essa punição se der em nosso plano de existência. Ao mesmo tempo, esperamos que nos seja oferecida uma possibilidade de redenção, mesmo quando todo o mundo nos considera irremediavelmente perdidos. No fundo, os heróis demoníacos são apenas a expressão do egoísmo humano: punição para os outros, redenção para mim, mesmo que eu já tenha perdido minha alma.

Eu realmente preferia quando ele só tentava comprar almas…
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o lucifer do sandman é um viadinho pqp,ficava com pena do sandman ele tinha que ter um saco sem fim para aguentar as lamurias dele e o mefisto sempre foi para mim um vilão foda