Muito antes da representatividade virar pauta, houve All-Negro Comics

Descubra a história da revista em quadrinhos que desafiou estereótipos raciais e enfrentou o boicote no cenário editorial norte-americano.

Publicada em junho de 1947, nos Estados Unidos, a revista All-Negro Comics constitui um marco na história das representações afro-americanas no meio gráfico. Editada por Orrin C. Evans, jornalista afro-americano com trajetória significativa no jornal Philadelphia Record, a publicação é amplamente reconhecida como a primeira revista em quadrinhos totalmente concebida, escrita e ilustrada por artistas negros norte-americanos. Sua criação pode ser interpretada como uma intervenção consciente no cenário cultural do pós-Segunda Guerra Mundial, constituindo uma reação à exclusão sistemática da população negra dos espaços de produção simbólica estadunidense.

Com histórias que abrangem múltiplos gêneros como o policial, a aventura, a fantasia infantil e o humor urbano, a revista estabeleceu uma ruptura significativa com os estereótipos dominantes produzidos pela mídia hegemônica da época. Personagens como Ace Harlem, um detetive sagaz e eficiente; Lion Man, um herói africano educado nos EUA com a missão de proteger riquezas estratégicas em seu continente de origem (alguém lembrou do Pantera Negra?); e figuras cômicas como Sugarfoot e Lil’ Eggie, retratados com humor e complexidade sem apelo a caricaturas raciais, afirmam uma nova perspectiva sobre a representação do negro na cultura popular norte-americana.

Ace Harlem

No editorial, Evans trata a revista como uma declaração de propósito e um marco político, uma conquista inédita: uma publicação inteiramente feita por artistas negros, com histórias originais e voltada para valorizar a cultura, o humor e o heroísmo negro. Ele reforça a intenção de oferecer representatividade positiva, combatendo estereótipos e apagamentos históricos. Cada personagem citado tem uma função simbólica — de heróis como Lion Man, que se conectam à ancestralidade africana, a figuras cômicas que resgatam memórias culturais. O editorial mostra como Evans era consciente sobre o papel político da mídia e o potencial dos quadrinhos como ferramenta de afirmação cultural e educacional. É um documento histórico de resistência e orgulho negro.

Lion Man e Bubba

A distribuição de All-Negro Comics foi atravessada por dificuldades estruturais e políticas. Apesar dos planos iniciais para uma segunda edição, o projeto foi abruptamente interrompido ainda em 1947 devido à recusa generalizada dos distribuidores em fornecer papel-jornal. Esse bloqueio é historicamente interpretado como uma forma velada de boicote, resultante de pressões exercidas por editoras concorrentes. O breve ciclo de vida da publicação ilustra as dificuldades materiais e simbólicas enfrentadas pelo empreendedorismo cultural negro num mercado editorial racializado.

A curta existência da revista, contudo, não diminui sua importância. Pelo contrário, ela é um documento essencial para compreender as estratégias culturais de resistência afro-americana no século XX, antecipando debates que viriam a ganhar destaque nas décadas subsequentes, como a demanda por representatividade, a desconstrução crítica dos estereótipos raciais e o papel das mídias populares enquanto arenas de disputa simbólica e cultural.

All-Negro Comics no Brasil

Encontra-se em andamento a campanha de financiamento coletivo para a publicação brasileira de All-Negro Comics, realizada pela Clio Editora, especializada em quadrinhos de relevância histórica. Sob a coordenação editorial do historiador Rodrigo Moraes, a iniciativa visa disponibilizar ao público brasileiro uma edição restaurada e fiel ao projeto gráfico original.

A tradução fica por conta de Márcio dos Santos Rodrigues, doutor em História e referência na pesquisa em quadrinhos africanos e afro-diaspóricos. Sobre o processo de tradução, ele comenta (grifos meus):

No caso de All-Negro Comics, estou tratando a tradução com o mesmo rigor crítico que aplico em minhas pesquisas acadêmicas e curadorias de quadrinhos. Considero cada escolha lexical à luz do contexto da época, do lugar social dos autores, da tradição discursiva a que pertencem e da recepção que queremos provocar no público brasileiro. Essa HQ circulou, vale dizer, em um cenário onde a representação negra era historicamente manipulada, caricaturada ou silenciada. Por isso, o cuidado não é apenas técnico – é político.

Como historiador e tradutor, tenho o compromisso de tratar obras com responsabilidade histórica, política e cultural. Em especial quando se trata daquelas produzidas por autores negros e/ou africanos, esse cuidado precisa ser redobrado. Tradução não é apenas transpor palavras de um idioma para outro, mas lidar com contextos, marcas culturais, referências internas e, sobretudo, com posicionamentos. O que venho observando com frequência – e critico com veemência – é um discurso que romantiza a figura do tradutor como alguém autorizado a “inventar” sobre o texto original, segundo critérios de estilo pessoal ou expectativas de público, desconsiderando completamente as autorias, ou como uma espécie de criador livre, como se fosse o autor da obra (algo que nem a legislação brasileira corrobora). Essa postura é particularmente problemática quando se trata de textos de autores negros do passado, cujas vozes enfrentaram processos históricos de silenciamento, apagamento ou distorção. Em All-Negro Comics, o cuidado está em dialogar com os sentidos originais, mesmo quando isso exige tensionar o português, explicitar determinadas escolhas ou incorporar glossários e notas que ajudem o leitor a compreender o contexto em vez de inventar sobre o trabalho de Orrin C. Evans, George J. Evans Jr., John Terrell, Cravat e outros desenhistas e roteiristas que produziram a revista.

Em vez de tentar “equivalências” forçadas ou domesticações que violentam a especificidade da linguagem original, optei por uma abordagem que respeita o registro, sem transformá-lo em paródia ou exotismo. Acredito que o inglês da época tem uma historicidade, uma carga cultural e uma função narrativa que não podem ser comprimidas em gírias brasileiras descontextualizadas, ainda mais aquelas que já carregam um histórico de representação estereotipada e racista no nosso próprio imaginário.”

A iniciativa da Clio Editora promove um diálogo necessário com a história dos quadrinhos, evocando questões sobre racismo estrutural, memória e estratégias históricas de resistência cultural. O financiamento coletivo não apenas viabiliza a circulação desta obra fundamental, mas também fortalece a conscientização histórica acerca das dinâmicas raciais e representacionais presentes na cultura popular contemporânea.

Participar dessa campanha é contribuir diretamente para a preservação e o reconhecimento crítico de um capítulo essencial da história afro-americana nos quadrinhos. Você pode apoiar o projeto até 20/05/2025 aqui.

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About Nerdbully

AKA Bruno Andreotti; Historiador e Mestre do Zen Nerdismo
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