Como o Superman alinhou-se à retórica intervencionista dos Estados Unidos no mundo globalizado.
Nota: esse é um excerto ligeiramente modificado de minha tese de doutorado, que você pode ler aqui.
Na história O que há de tão engraçado em Verdade, Justiça e o American Way? (What’s So Funny About Truth, Justice e the American Way?) com roteiro de Joe Kelly e desenhos de Doug Mahnke e Lee Bermejo, publicada em Action Comics n.775 (março de 2001), o Superman é antagonizado pelo time de super-heróis “A Elite”. O grupo é uma sátira do Authority, equipe que utiliza métodos extremamente violentos para conter uma série de ameaças terroristas, ganhando, com isso, uma enorme popularidade em âmbito mundial. Apesar de curta, com começo meio e fim em apenas uma edição, a história foi aclamada na época de seu lançamento, posteriormente sendo adaptada na animação Superman vs. The Elite (2012).
O quadrinho é importante porque coloca o Superman diante dos dilemas de um mundo globalizado: se, durante a Guerra Fria, os Estados Unidos conseguiram associar capitalismo a democracia e socialismo a autoritarismo, com o fim da União Soviética, o american way seria risível, continuaria relevante ou mesmo desejável?
A Editora Abril simplesmente pulou essa história, que só foi publicada em 2003 pela Panini com genial título de “Olho por olho?”, que muda o foco do problema político do título original em uma questão meramente moral. Mas, enfim, voltemos à história. O grupo “A Elite” possui um manifesto:
Nós não acreditamos em nações. Nós não acreditamos em tratados ou limites geográficos ou classes ou política. Existem os mocinhos, ou seja, nós, e existem os vilões, ou seja, qualquer um que trate alguém como lixo para alcançar seus belos objetivos. Você pediu por nós, mundo, e agora você nos tem. Sejam bons ou vamos explodir sua casa com bomba de 50 megatons. (Action Comics n.775, 2001, p. 6)
As instâncias supranacionais como a Organização das Nações Unidas classificam os atos do grupo como fascistas. Indignado com o apoio de parte da população mundial ao grupo, Superman desabafa com seu pai terrestre, Jonathan Kent, que diz que, “às vezes, a verdade, justiça e o american way não fazem as pessoas se sentirem melhores. Elas querem respostas fáceis” (Action Comics n.775, 2001, p. 17).
O Superman indigna-se com o fato de que o grupo de super-heróis não possui nenhum respeito ou noção pelos direitos humanos. À beira da derrota ele é confrontado pelo líder do grupo, Manchester Black (que carrega no peito a bandeira do Reino Unido), que parodia o lema tradicional do Superman: “verdade, justiça e a direita militar comercial americana”, como pode-se ver a seguir.
Com a vitória do Superman sobre o grupo, o super-herói afirma: “Sonhos nos salvam. Sonhos nos erguem e nos transformam. Eu juro… até que meu sonho de um mundo onde dignidade, honra e justiça tornem-se a realidade que todos nós partilhamos, eu nunca vou parar de lutar. Nunca.” (Action Comics n.775, 2001, p. 39) O título da história, O que há de tão engraçado em Verdade, Justiça e o American Way?, é também o título do artigo escrito e publicado por Clark Kent no Planeta Diário, relacionando a imprensa com a busca da verdade na defesa de ideais democráticos.
Em diversos aspectos a história retoma o tema do herói autoritário e sanguinário aclamado pela população, presente em Reino do Amanhã, de 1996, com a Elite ocupando a função do vilão Magog. Nas duas histórias há o questionamento se o Superman, e os valores que ele representa, são ou não relevantes para o mundo atual. Nas duas histórias, há a reafirmação desses mesmos valores ao final.
O tema do terrorismo como um inimigo amorfo também foi prenunciado no quadrinho O Próprio Medo (Fear Itself), de junho de 1999, com roteiro de Ron Marz e desenhos de Brad Parker. A história tem como protagonistas os Lanternas Verdes: Alan Scott, o Lanterna Verde da Era de Ouro, que enfrentou o medo materializado pelo nazifascismo nas décadas de 1930 e 1940; Hal Jordan, Lanterna Verdade da Era de Prata, que encarou o medo na ameaça da União Soviética e do comunismo nos anos 1960; e, por fim, o Lanterna Verde Kyle Rayner, situado entre a Era de Ferro e a Renascença, que enfrentaria o medo amorfo do terrorismo no final dos anos 1990.
Em 11 de setembro de 2001, ocorreria o ataque às Torres Gêmeas, que faria com que os Estados Unidos se engajassem novamente em uma lógica de guerra. A política externa dos Estados Unidos transformou o 11 de Setembro no eixo central de uma nova ordem mundial, exigindo um realinhamento de alianças e projeções estratégicas com o objetivo de oferecer combate a um terrorismo não definido. O debate segurança versus liberdade e a chamada Guerra ao Terror, contra as guerras do Iraque e do Afeganistão, compuseram essa lógica de guerra. E, nos quadrinhos de super-heróis, a autoridade governamental com frequência era tratada com desconfiança.
No início do século XXI, após a queda da União Soviética, os Estados Unidos viam-se em uma espécie de vácuo de inimigos, e então os vilões passam a ser identificados como terroristas, um termo de difícil definição, seja ela jurídica, conceitual ou política. Seria o “american way” universalizável nesse novo contexto? “What’s So Funny About Truth, Justice e the American Way?” direciona uma resposta.
“American way”, o “caminho Americano”, consiste em um sonho, um ideal compartilhado, em que o percurso parece ser mais importante que o destino. Este ideal e os conceitos associados, “justiça” e “verdade”, são apresentados de forma maleável o suficiente para sustentação de atos passíveis de crítica como, por exemplo, a invasão do Iraque. Importante lembrar esta foi a ocasião em que o Estados Unidos, pela primeira vez, agiu de forma unilateral, em desacordo com as deliberações da ONU, desde 1945. Seja dentro ou fora dos quadrinhos, a questão permanece: a verdade e justiça são para quem?









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