Revista Mil Grau e o devir periferia

A potência da periferia nas páginas de um gibi.

A própria existência da revista Mil Grau já é, em si, um manifesto. Projeto levado à cabo por Márcio Jr., João Pinheiro e Álvaro Maia pela MMArte Produções, tem como objetivo declarado democratizar o acesso aos quadrinhos, hoje cada vez mais caros e encastelados, feitos mais para serem colecionados que lidos, mais para adornarem estantes que fruídos, mais para serem cofrados que manuseados.

Tivemos a honra de conversar com João Pinheiro e Márcio Jr. sobre o projeto, que você pode ouvir abaixo:

Mas a proposta da Mil Grau vai além. Como marca o editorial escrito por João Pinheiro conjurando Milton Santos, é a revanche da cultura popular sobre a cultura de massa a partir da própria cultura de massa. A revanche da periferia. E já começa impactante na capa por João Pinheiro. Afinal, quem mais poderia juntar o clássico da ficção científica japonesa Tetsuo – The Iron Man (1989) com Grande Otelo?

Logo ao virarmos a página temos o quadrinho De Trás Pra Frente de Luiz Gê, que se repete ao contrário no final da revista, com o título De Frente Pra Trás. Em apenas uma página, Luiz Gê conta a história da opressão no Brasil com uma concisão proibida para o historiador, mas permitida ao artista. Em seguida, o personagem Wellington Jacaré de João Pinheiro dá o tom do encontro que começa:

Temos a ficção científica Soláris, de Álvaro Maia em que a periferia encontra o cinema russo de Tarkoviski.

Depois vemos uma história com a personagem Preta Maravilha, criação de João Pinheiro, nas mãos de André Toral contra o garimpo ilegal – num tom um tanto panfletário, mas necessário.

Em Chicão, por Sirlene Barbosa e João Pinheiro, temos uma história que tira da banalidade o fato normalizado de um homem que passa fome.

Em Trimano, Porra! temos o relato do encontro de dois gênios dos quadrinhos: Luis Trimano e João Pinheiro. Só digo que daria um olho para testemunhar esse encontro. Trimano, ilustrador argentino que fugiu da ditadura do país vizinho e veio parar no meio do endurecimento da nossa ditadura (1968), trazendo as referências da figuração dos portenhos e do muralismo mexicano para as páginas dos jornais e revistas brasileiros. Fez cartaz pra teatro, capas de disco e de livro e influenciou uma geração de ilustradores. Nas páginas da Mil Grau sua presença, assim como a de Luiz Gê, é a ponte entre gerações de artistas gráficos que fizeram de seu ofício resistência.

Márcio Jr. e Gabriel Renner (com pesquisa de Cristiano Barros) nos dão um vislumbre do que seria uma ética da quebrada em Metralha, que narra um episódio lendário da vida de Nelson Gonçalves: seu encontro com Madame Satã e Miguelizinho Camisa Preta.

Quadro de Metralha

Uma ilustração de Marcelo D’Salete serve como prelúdio à história Mulherio de Silene Barbosa João Pinheiro, que mostra o que toda sala de aula deveria ser: um espaço seguro para discutir os problemas da nossa sociedade e para tomada de consciência. Temos também uma crônica da quebrada em Ida e Volta de João Pinheiro e Diox, fechando com o humor de Wellington Jacaré em Escolhinha Maloqueirista e a contracapa de Allan Matias.

Mil Grau retoma a tradição quadrinhos curtos no Brasil e também do mix de autores em uma única edição. Em um país onde a maioria da população vive à beira do colapso econômico e social e a existência nunca é uma garantia, uma revista raramente pode se dar ao luxo de uma segunda edição, então o recado tem que ser dado de maneira direta, potente, certeira. Com uma potência periferizante, vai lançando tudo o que toca, seus autores, temas e leitores, num devir periferia e aqui, obviamente, estou evocando Deleuze e Guattari.

Devir é mudar, transformar-se. Mas não a partir de um movimento ensimesmado, mas de um encontro com outro, com algo que nos é exterior. E, claro, também deve-se estar à altura desse encontro, dessa possibilidade de transformação que nos é oferecida a partir desse encontro. Um encontro capaz de transformar nossa maneira de existir, transformar nossa própria subjetividade em contraposição às subjetividades pré-fabricadas, hegemônicas e capitalísticas.

Vida longa à Mil Grau!

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AKA Bruno Andreotti; Historiador e Mestre do Zen Nerdismo
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