O Astronauta viu a Terra Plana? Mauricio de Sousa e o negacionismo

Será mesmo que as histórias da Turma da Mônica são apolíticas?

Nos últimos anos a Gibisfera tem criticado (timidamente) e defendido (passionalmente) as produções e posturas de Mauricio de Sousa. O texto que segue é um compilado e um comentário sobre as contradições e as declarações da família, da empresa e suas produções.

Em 2014 o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) publicou a Resolução n.163 que dispunha sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança e ao adolescente. Escrevemos um texto aqui sobe a reação de boa parte dos produtores e fãs de quadrinhos, que naquele momento entendiam que a rigidez proposta pela resolução estrangularia economicamente o mercado (a caixa de comentários do nosso texto virou um campo de batalha). Ao longo de quase 10 anos muitas decisões judiciais ratificaram as propostas da resolução, o mercado se adaptou e o apocalipse anunciado, obviamente, não aconteceu – ainda que muitos marmanjos chorem o fim da TV Globinho até hoje.

À época, a filha do Mauricio de Sousa, Mônica de Sousa, numa entrevista para o jornal O Globo, criticou a resolução do CONANDA. Segundo ela o problema não era a publicidade que falava diretamente com a criança, mas os pais que não educavam e que substituiam convívio por presentes. Mais do que isso, na visão dela os personagens licenciados poderiam educar as famílias, influenciar positivamente seus habitos de consumo e até cultivar valores como o respeito aos pais, “numa sociedade mais ou menos equiparada, onde todo mundo tenha pai e mãe cuidando com carinho”.

Tem dois pontos importantes e contraditórios entre si no posicionamento da Mônica de Sousa nessa entrevista. De um lado ela credita aos pais e responsáveis os problemas causados pelo estímulo ao consumo direcionado à criança e ao adolescente, individualizando o assunto e minimizando os contextos coletivos como o acesso a creches, a desigualdade econômica, a precarização do trabalho, etc. De outro, ela vê a empresa como uma força positiva que pode transformar a sociedade a partir de seus valores e exemplos, e que a regulação imposta pelo poder público impediria isso.

Numa recente conversa no videocast Desculpa alguma Coisa, outro filho do Maurício, o Mauro Sousa, falou sobre problemas nas relações familiares. Mauro, que é homosexual e que desde 2018 tornou publica sua vida afetiva, conta que cortou relações e saiu do grupo de Whatsapp da família por causa de homofobia e negacionismo. Em 2021 numa entrevista para a Folha de São Paulo, Mauricio de Sousa disse que a homossexualidade é um tema discutido nos bastidores pelos roteiristas das histórias da Turma da Mônica, mas que ele prefere aguardar uma maior aceitação social para incluir esse tipo de representação. Uma opinião muito diferente da ideia de uma empresa que se vê como uma força positiva e transformadora da sociedade.

Nessa mesma entrevista ele lembra que não permitir que temas políticos apareçam em suas histórias continua sendo a estratégia da empresa, que ele adotou desde os tempos da Ditadura Militar (1964-1985). Ainda durante a campanha à presidência que elegeu Jânio Quadros (1960), Mauricio de Sousa e a Associação de Desenhistas de São Paulo se articularam politicamente para passar uma legislação que garantiria uma reserva de mercado para a produção nacional de tiras de jornal. Com a renuncia de Jânio e a instabilidade política que levou ao golpe de 1964, a Associação foi classificada como comunista e a produção dos artistas ligados a ela foi banida dos jornais pela Ditadura. A solução foi se retirar do ativismo anti-ditadura, e o resultado foi o crescimento exponencial da marca durante o regime. Ele fala rapidamente sobre isso nessa entrevista para o Roda Viva de 2017:

Apesar desse posicionamento, tanto o Instituto Mauricio de Sousa quanto a Mauricio de Sousa Produções (MSP) tem parcerias com governos e empresas privadas que expressam determinadas visões de mundo (políticas, portanto). Uma das mais recentes são duas animações e um gibi em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública sobre concientização, prevenção e combate à violência contra a mulher. O material é bom e pode soar bastante progressista, mas será que se a solicitação do Ministério fosse sobre um tema que não tivesse o consenso da opinião pública, a MSP toparia? Ou ainda esperaria um tempo para associar seus personagens a uma causa sem o risco de sofrer críticas?

Outra é um gibi sobre educação financeira para crianças em parceria com o coach financeiro Thiago Nigro (Primo Rico). Essa última foi alvo de um comentário crítico do Alexandre Linck (Quadrinhos na Sarjeta), comparando a edição com a parceria entre a coach financeira Nathália Rodrigues (Nath Finanças) e o Ziraldo, que também resultou num gibi sobre educação financeira para crianças.

A diferença entre as duas produções são as visões de mundo dos dois coaches. Enquanto o Primo Rico afirma que é possível chegar a um milhão ganhando pouco mais que um salário mínimo (trabalhe enquanto eles dormem, etc), Nath ensina como parar de pagar taxas aos bancos e exigir ressarcimento. Essas visões diferentes são posturas políticas, e mesmo que o pai da Turma da Mônica afirme que a sua estratégia é não permitir que temas políticos apareçam nas histórias dos seus personagens, as escolhas que a empresa faz são, sim, políticas.

Outra polêmica levantada pelo Alexandre Linck no seu canal é a possível relação entre o personagem Capitão Feio e a campanha de 1972 do governo militar com o mote “Povo desenvolvido é povo limpo”. Na campanha o personagem Sujismundo é criticado por seu habitos de higiene. A ideia era associar os problemas do país ao comportamento individual de seus cidadãos, e não aos problemas estruturais como a falta de saneamento básico, as péssimas condições do transporte público, os baixos salários, etc. O caso do Capitão Feio seria um aceno a essa mentalidade e revelaria um alinhamento entre as produções da MSP com o regime.

Estudos aprofundados sobre a relação entre os contextos políticos e econômicos e a trajetória das publicações da Turma da Mônica e seus derivados são necessários, mas no geral esse tipo de crítica é muito mal vista pelo público e pelos produtores de conteúdo da Gibisfera (infâncias destruídas, lacração – a ladainha de sempre). Mas para podermos compreender a fundo a história do quadrinho nacional teremos que fazer esse mergulho cedo ou tarde e superar as narrativas apologéticas e oficiais.

Podemos aqui traçar um paralelo entre a visão da Mônica de Sousa em relação a regulação do Estado sobre a propaganda para crianças, a visão da Ditadura Militar sobre as causas do subdesenvolvimento do país, e o discurso do Primo Rico. Nos três casos a ideia de fundo é meritocrática e conservadora, que pontifica que só prospera quem se esforça e tem valores corretos. Seja pelo esforço pessoal, pelos habitos de higiene ou pelo valoroso esforço empreendedor, a ideia que une esses discursos é que a ação individual é o que transforma a sociedade. Essa é uma visão eminentemente política. Mas ao que parece, na percepção do Maurício de Sousa e de suas empresas, essa é uma visão neutra, que não se mistura com ideias políticas.

Esse equívoco é muito comum. A ideologia com a qual um indivíduo se identifica é compreendida por ele como uma não-ideologia. Mauricio de Sousa, sua família e seus negócios possuem uma posição política, e essa leitura de mundo vai inevitavelmente aparecer nas páginas de suas histórias. Negar isso é também uma postura política.

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