Conheça essa estranha, rara e bela hq.
Após a crise que abalou a indústria de quadrinhos argentinos nos anos 90, a editora Gárgola, originalmente voltada para o mercado de livros, ousou explorar o universo dos quadrinhos com a antologia Bastión. A revista destacava-se por misturar histórias de renomados escritores internacionais, como Frank Miller, com o talento emergente de artistas locais. Na segunda fase, rebatizada como Bastión Unlimited surgiu a dupla Mauro Mantella (roteiro) e Germán Erramouspe (desenhos) com O Homem Primordial, publicada originalmente em seis partes, obra que desafia os limites do heroísmo e questiona a condição humana – como se o Übermensch de Nietzsche confrontasse a própria existência de Deus.
O Homem Primordial destacou-se não apenas pela ousadia do enredo, mas também pelo uso simbólico do preto e branco, uma escolha estética que acentua o contraste entre luz e escuridão, reforçando os dilemas filosóficos e morais da narrativa. Em meio ao cenário dos quadrinhos argentinos em 2005, a obra surgiu desafiando o estigma de que histórias de super-heróis no país estavam fadadas ao fracasso – um preconceito talvez semelhante ao existente no Brasil.
Comparar O Homem Primordial ao Miracleman de Alan Moore é uma simplificação grosseira, ainda que a influência seja inegável – tão reducionista quanto dizer que Moore copiou o Capitão Marvel. A graphic novel de Mantella e Erramouspe vai muito além de qualquer comparação superficial, explorando o heroísmo de forma visceral, poética e filosoficamente complexa. Num universo onde heroísmo costuma ser sinônimo de poder e invulnerabilidade, Max Redland emerge como um protagonista que subverte todas as convenções.
Max é um jovem com síndrome de Down que, após um diagnóstico devastador de HIV, enfrenta um destino inimaginável: ele se transforma em Adão, o Homem Primordial. A metamorfose ocorre de forma quase kafkiana, marcada pelo surgimento da marca Alef em seu peito – um símbolo com conotações místicas de começo e infinito, conectando Max às forças primordiais do universo. No entanto, diferente do arquétipo tradicional de super-herói, Adão não é definido apenas por seus poderes; ele representa resiliência, dor e a busca pelo sentido da existência.
A jornada de Max é carregada de simbolismos profundos, enraizados em mitologia, Cabala, Gnosticismo e na própria concepção de divindade. A rachadura é o leitmotiv que permeia toda a narrativa, sintetizando magistralmente os temas abordados. Em notas adicionais, Mantella explica que a rachadura representa a fragilidade da condição humana diante da vida, da divindade, das tragédias e do próprio universo. Ela simboliza algo que ainda não está quebrado, mas que segue, inevitavelmente, em direção à ruptura, refletindo o estado constante de vulnerabilidade da existência humana.
Além disso, a rachadura simboliza a bifurcação, uma dualidade essencial: algo que deveria seguir um caminho, mas toma outro rumo. Germán Erramouspe traduz essa simbologia visualmente em detalhes sutis (como se pode ver na página abaixo). Esse elemento visual torna-se uma metáfora poderosa para os desvios do destino, as escolhas que transformam o curso da vida e a incerteza do futuro.
O gnosticismo presente na obra é patente. Max confronta as limitações impostas pela matéria, transformando-se em um canal de transcendência espiritual que desafia as expectativas sociais e as próprias leis da realidade. Mantella aborda essa busca existencial com uma sensibilidade que só pode nascer de uma dor profunda – a tragédia da perda de um amigo próximo permeia a obra, conferindo-lhe um tom melancólico e uma profundidade emocional arrebatadora.
A narrativa explora, ainda, temas complexos como erotismo, religião e política com ousadia e sofisticação. Andrés Accorsi, jornalista e editor do site Comiqueando, destaca:
“O Homem Primordial é atípico em todos os sentidos. Ele aborda erotismo, religião e política com uma violência sombria disfarçada por uma sutil poesia, além de dissecar um personagem com síndrome de Down… É uma obra verdadeiramente imprevisível, chocante e comovente. O resultado é uma joia estranha no cenário dos quadrinhos argentinos.”
A edição brasileira, publicada pela Tai Editora, marca um momento significativo para a obra, sendo a primeira tradução para outro idioma. Traduzida com sensibilidade por Jana Bianchi, a edição inclui dois prólogos escritos especialmente para o público brasileiro, onde Mantella e Erramouspe compartilham suas reflexões sobre a criação da HQ e seu impacto emocional e filosófico.
Diferente de edições que utilizam extras apenas para inflar o número de páginas, os conteúdos adicionais de O Homem Primordial enriquecem genuinamente a experiência de leitura. Eles oferecem insights sobre a construção narrativa, a simbologia e o processo criativo dos autores, tornando a obra ainda mais profunda e instigante.
Aclamada, O Homem Primordial conquistou um espaço distinto no universo dos quadrinhos, não apenas por sua narrativa complexa e multifacetada, mas também por sua ousadia ao dissecar as contradições e dilemas da condição humana através de um protagonista atípico e comovente. Ao desafiar estereótipos e explorar temas como dor, fé, poder e resiliência, a HQ oferece uma releitura sofisticada do gênero de super-heróis.
Profunda, filosófica, brutal e poeticamente bela, O Homem Primordial é uma jornada de autodescoberta e coragem que ecoa muito além das páginas impressas, reafirmando o poder da arte sequencial como veículo de reflexão existencial.








