
Impressões sobre a obra de Lourenço Mutarelli a partir de A Caixa de Areia Ou Eu Era Dois No Meu Quintal.
É difícil escrever sobre um autor ou obra da qual se gosta. É por isso que nesses mais de 10 anos de Quadrinheiros não há nenhum texto meu sobre Lourenço Mutarelli. Ou não havia.
Lembro que ainda adolescente cheguei a mandar um e-mail para a Devir (editora do GURPS) dizendo que não havia gostado das ilustrações do suplemento para GURPS Supers Escola de Super-Heróis, que eram feias, ruins (eu era jovem). O próprio Douglas Quinta Reis respondeu ao e-mail e me perguntou:
Você acha que são feias ou ruins ou que não combinam com super-heróis?
E aquela simples pergunta me fez enxergar a beleza grotesca da arte de Mutarelli – que de fato não combina com o gênero da superaventura, embora eu hoje leia a história com um misto de deleite e fascinação. Mutarelli ilustrou muitos livros de GURPS e já declarou algumas vezes que foi um trabalho meramente para pagar contas, o qual fazia com uma dose considerável de sofrimento.

Quadros da história Origem, que abre o suplemento Escola de Super-Heróis para GURPS Supers.
A partir de então tornei-me um leitor voraz da obra de Mutarelli, um autor multimídia na mais pura acepção do termo. Sua obra abrange romances, peças de teatro, ilustrações e quadrinhos.
Na prateleira aqui de casa, sua obra quase completa. Para cada uma delas uma tentativa frustrada de escrever algo sobre. Até agora.
Kleiton e Carlton são duas figuras que passam suas vidas num carro dando voltas por um vasto deserto e divagando sobre a existência. Paralela a esta trama, acompanhamos o cotidiano de um personagem chamado Lourenço, um quadrinista que reflete sobre a passagem do tempo e busca desvendar um acontecimento misterioso: a razão de brinquedos perdidos de sua infância aparecerem, um após o outro, na caixa de areia de seu gato.

E é nesse tom que remete a um sonho de Kafka ou a uma peça de Beckett que a história é desenvolvida, mas creio que nem “fantástico” nem “absurdo” são palavras que dão conta da obra.
A Caixa de Areia Ou Eu Era Dois No Meu Quintal opera por dissonâncias, já no próprio título duplo e até mesmo no segundo título Eu era dois.
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dis·so·nân·ci·a
sf
1. Falta de harmonia entre sons, causando impressão desagradável ao ouvido.
2. COLOQ V. desafinação.
3. POR EXT (acepção 1) Ausência de harmonia, de concordância (entre duas ou mais coisas); desproporção entre as partes de um todo.
4. MÚS Proximidade de notas que geram tensão.
5. MÚS Na música tonal, intervalo (ou acorde) sem resolução harmônica em consonância, principalmente os intervalos de segundas ou sétimas, bem como todos os acordes que contenham tais intervalos, exigindo resolução em outro acorde.
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Aliás o duplo é um tema recorrente na obra de Mutarelli, repleta pais e filhos (pais como duplo dos filhos, filhos como duplos dos pais), irmãos, sombras, pares e gêmeos. Um segundo tema recorrente em sua obra, também presente em A Caixa de Areia ou Eu Era Dois No Meu Quintal: o tom autobiográfico, como atesta o nome de um dos protagonistas. Ou melhor, falsamente autobiográfico. Melhor dizendo, autoficcional. Mais uma vez, dissonância.

Note como a própria imagem do tempo como ampulheta remete também ao duplo.
Nova dissonância quando vemos o Capitão Idealidade (um super-herói da editora Marvéu) que deve lutar contra a realidade, que nas páginas da obra aparece como movediça, insólita, seja na jornada dos irmãos Kleiton e Carlton, seja nos brinquedos que aparecem misteriosamente na caixa de areia.

A hq foi a última escrita por Mutarelli. Talvez porque nela o autor tenha alcançado o objetivo a que se propôs: provar que uma foto pode ser realista, mas um desenho pode captar mais realidade.
A dissonância final.




