Conto: Novo Mundo

Ilustração de Mauricio “Picareta Psíquico” Zanolini

Hoje tem ficção científica no Ficcioneiros!

 

 

 

 

 

 

Por Rafael Zoehler*

“Assim que essa nave tocar o solo, seu Deus morre, padre.” Solomón disse para Sayed.

“Parece que alguém não dormiu bem…” Comentou Zhao.

“Cala a boca, Zhao.”

“Já calei.”

Sayed, o padre, não falou nada.

Como em toda missão de reconhecimento a um planeta de vida confirmada, apenas três passageiros cruzavam o vácuo do espaço. Normalmente a tripulação era composta por um piloto, um engenheiro e um químico. Dessa vez, porém, Sayed era necessário. Pela primeira vez na história, de acordo com os dados dos observatórios, um planeta com vida inteligente foi encontrado. Isso poderia colocar em cheque o mito da criação que os seres humanos ainda teimavam em acreditar.

“O que você tem a dizer sobre a Unificação Divina, padre? Eu acho uma bela bosta, e você?” Solomón provocou mais uma vez.

“Ele tem um ponto, padre. Não dá pra te defender agora.” Zhao comentou.

“Depois de Viena, quando os países entraram em acordo, o único foco de violência que sobrou no mundo foram esses amigos imaginários. E o que vocês religiosos fizeram? Já sei, vamos dizer que todos os deuses são um só, assim ninguém mais vai se matar. E o que aconteceu? Todos os fanáticos como você começaram a matar mais ainda por não concordar com isso.” Solomón continuou seu raciocínio.

KP-303 não era um planeta excepcional. Sua única semelhança com a Terra era a cor azul, nesse caso, resultado da atmosfera composta em sua maioria por metano. A raça humana já havia encontrado vida em planetas com essas condições antes, mas apenas bactérias e outros micro-organismos. Ao longo dos séculos, diferente do que se esperava com o avanço tecnológico, vida inteligente ainda permanecia oculta na galáxia. A expectativa da missão era grande.

“100 anos, padre. 100 anos de conflito pós Unificação. Isso sem falar dos milhares de anos de guerras santas e cruzadas. Uma montanha de corpos em nome do paraíso.”

“Você parece conhecer bem o assunto, Solomón.” Disse Zhao.

“Estudei pra ser padre.”

“Isso explica o que você sabe, não o que você sente. O que mudou?”

Silêncio.

“Meu pai morreu num atentado. Madrid, 2842.” Solomón disse.

“Ah… eu lembro desse.” Comentou Zhao.

“Quer saber algo engraçado, Zhao?”

“O quê?”

“Todos os líderes de todas as religiões pré-unificação eram ateus.”

“Isso é verdade, padre?” Zhao perguntou do outro.

Sayed permaneceu em silêncio. Observava KP-303 pela escotilha reforçada e via a pequena bola azul ficando maior a cada instante. Havia ficado calado durante toda a preparação para a viagem, e seu único tempo de paz foram os 15 anos de hibernação. O único período em que se viu livre dos ataques do companheiro. Solomón era o maior teste para sua fé até então.

“Seu Deus, seus deuses, todas essas mentiras, mataram meu pai, padre.”

“Muito legal essa sua raiva toda, Solomón, mas dá pra você calar a boca dessa vez?” Zhao rebateu. “Já deu pra entender que você odeia ele, o Deus dele, a religião dele, a vida dele, o tipo sanguíneo dele. Chega.”

A grande quantidade de nuvens mal deixava o solo de KP-303 aparecer. Apenas alguns pedaços de chão conseguiam escapar por trás das grandes almofadas azuis e flutuantes que eram as nuvens. O que será que havia ali embaixo, Sayed se perguntava. Pela densidade da atmosfera, era impossível saber o tipo de criatura que habitava aquela rocha. Nem mesmo os observatórios conseguiam atravessar a interferência para obter mais informações. Por isso a missão era necessária. Por isso Sayed era necessário. Qualquer que fosse a forma de vida inteligente, sua crença, todas as crenças, estavam em cheque.

“Estamos entrando na atmosfera. Ela é mais densa que o normal, preparem-se.” Disse Solomón.

O piloto, comandante da missão, voltou sua atenção para os controles da pequena nave. Como em toda missão espacial, tanto a nave quanto a tripulação eram reduzidas por questões de economia de combustível e otimização de potência do motor. Alguns quilos a mais e não teriam força para vencer a atmosfera na saída. E todos queriam voltar para casa.

Solomón desligou o piloto automático e assumiu o controle. Não haviam dados suficientes para confiar na inteligência artificial. Assim que encontraram a atmosfera, todos os parafusos pareciam querer pular dos seus lugares. A trepidação jogava os corpos de um lado para o outro e a vista das janelas era como núcleo do Sol.

“Deus fez o homem sua imagem e semelhança, padre. Essa crença se mantém mesmo após a Unificação.” Solomón disse enquanto a nave se tornava uma bola de fogo no céu. “Num planeta com a atmosfera de metano, a forma de vida que vamos encontrar vai ser diferente. Vão ser outros homens, padre. Como seu Deus, criador do universo, vai explicar isso?

Zhao fechou os olhos e apertou o cinto. Sayed rezava sem emitir sons, apenas mexendo os lábios. Solomón era um poço de calma, olhando o caminho enquanto a nave vencia a barreira de nuvens.

“E nem vai adiantar usar os argumentos dos hindus. Deus morre agora. Ele já matou gente demais, padre. Fico feliz de ser o homem que vai matar ele de vez.”

A trepidação diminuiu, bem como as preces de Sayed e o nervosismo de Zhao. Solomón esperou o computador de bordo identificar o melhor local para o pouso. Inicialmente, a inteligência artificial escolheu um lugar isolado, mas Solomón estava ansioso demais. Ele sabia que a vida inteligente do planeta ainda não emitia ondas de rádio ou qualquer outro tipo de radiação. Deveriam estar no equivalente à Idade Média da Terra. Não havia o que temer com a tecnologia que possuíam. Solomón queria matar Deus, e tinha pressa. Redirecionou o percurso para onde o computador indicava o aglomerado mais próximo de seres vivos multicelulares complexos.

A nave tocou o solo, e os três desceram pela pequena rampa. Zhao foi o primeiro a parar, colocando a mão no peito de Solomón.

“Mas o quê?” Disse Zhao.

“Não é possível.” Disse Solomón.

“Eles são…”

“Cala a boca, Zhao.”

“São…”

“Humanos.” Sayed disse por fim dando um passo à frente.

De dentro dos seus trajes, os três observaram um grupo de seres estranhamente familiares ajoelhados no solo de KP-303. Todos em pose de adoração aos visitantes. Pernas, braços, bocas, narizes, olhos, ouvidos. Uma leve coloração diferente de pele, mas tão humanos quanto todos que eles já haviam encontrado. Sayed deu mais alguns passos para frente e virou-se para os companheiros.

“Sabe o que eu tenho a dizer, Solomón? Sabe? Aleluia!”

 

*Rafael Zoehler é formado em engenharia, mas é publicitário. É gaúcho, mas é de Manaus. Leva D&D a sério e, atualmente, vira mais noites do que gostaria jogando PUBG. Posta de vez em quando no Medium, bem sem compromisso.

 

*

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