O Teatro Grego da DC e a Commedia dell’Arte da Marvel

batman live showDC e Marvel se inspiraram em tipos diferentes de teatro?

A origem do teatro é atribuida à Grécia de mais de 2.500 anos atrás. É muito provavel que outros povos tenham desenvolvido a encenação de pequenas histórias, e que essa prática, assim como a música e a dança, remontem à pré-historia humana. Ainda assim, o que se estabeleceu na Grécia, como a tragédia, a comédia, e a interferência dos deuses em assuntos humanos (dai vem o Deus Ex-Machina como solução “mágica” para narrativas), serviu de base para o teatro no ocidente. A dramaturgia grega fazia parte de rituais religiosos, de devoção e oferenda aos deuses, que se extendiam por dias, e aconteciam em palcos cercados de arquibancadas (arquitetura essa que também influenciou os palcos ao longo da história).

Terra um Mulher Maravilha

Diana sendo julgada no teatro da Ilha Paraiso – Mulher Maravilha – Terra Um

O Império Romano, que absorveu a cultura grega (helênica) e estabeleceu essa arte por toda a Europa, dessacralizou o teatro. As encenações tinham o objetivo principal de oferecer entretenimento, e dividiam a atenção dos espectadores com lutas de gladiadores e a apresentação de animais exóticos. Com o declinio do Impéro Romano, o teatro passou a ser controlado pela Igreja Católica (ao longo da Idade Média), e portanto voltou a ter um caráter sagrado e moralizante, feitas em igrejas (com passagens bíblicas e a vida dos santos) e praças (com cenas do cotidiano para falar de pecado e salvação).

No Renascimento o teatro desligado da religião reaparece, inspirado no teatro grego (clássico) e financiado pelos ricos comerciantes que impulsionavam as artes. Como contraponto a esse teatro feito por e para a elite econômica, surge então a Commedia dell’Arte, um estilo de teatro popular, itinerante (com uma trupe que viajava e se apresentava em diferentes espaços públicos), que se estruturava em personagens esteriotipados e caricatos, e no improviso durante as apresentações.

Mas porque eu estou contando tudo isso pra você, leitor de um blog sobre histórias em quadrinho de super-heróis? É que a trindade da DC (Superman, Batman, Mulher Maravilha), que surgiu entre 1938 e 1941, tem paralelos com o teatro grego, assim como Homem-Aranha, Quarteto Fantástico e Hulk e Nick Fury da Marvel, criados entre 1961 e 1963, tem similaridades com o teatro popular renascentista.

Superman Batman Mulher Maravilha deuses

O caráter arquetípico dos personagens da DC, a proposição de que eles seriam um panteão moderno de deuses, são ideias bastante conhecidas. Numa conversa com o Alexandre Link, do Quadrinhos na Sarjeta, ele propôs que os personagens da DC são como deuses em queda, e que os personagens da Marvel seriam pesoas comuns em ascensão. Essa ideia de queda e ascensão é interessante porque funciona como motor para as histórias (é o elemento de conflito que move os personagens), e reforça o paralelo com o teatros grego e renascentista.

A outra ponta dessa comparação – Marvel e Commedia dell’Arte – é ainda mais instigante por ser menos debatida. Os personagens estabelecidos nesse tipo de teatro no século XVI, como o Arlequim (o palhaço malandro), o Pierrot (o palhaço/servo fiel e triste), a Colombina (criada inteligente e habilidosa), o Dottore (velho rico e intelectual) e o Pulcinella (corcunda rejeitado), entre outros, serviam para retratar pessoas do povo e situações daquela sociedade naquele contexto. Mas é impossível não enxergar o Quarteto Fantástico como um grupo formado por um Dottore, uma Colombina, em Arlequim e um Pulcinella, ou ainda o Homem-Aranha como um Pierrot como Peter Parker e um Arlequim quando coloca o uniforme de vigilante.

Quarteto Fantástico commedia dell arte

Mas os paralelos não param por aí. O método Marvel de produzir quadrinhos, com Jack Kirby desenhando todas as páginas a partir de uma conversa rápida com Stan Lee, que mais tarde colocava as narrações, diálogos e recordatórios sobre a arte, soa como o improviso característico da Commedia dell’Arte. Entendendo improviso não como uma solução qualquer só pra dar conta do trabalho, mas sim a capacidade de criar sem muito planejamento, porque quem está improvisando já domina todos os mínimos detalhes daquela linguagem, assim como é o improviso no jazz.

Na minisérie 1602, escrita pelo Neil Gaiman, os principais personagens da Marvel são reimaginados como se todos tivessem sua origem no tempo da Inglaterra elizabetana. Gaiman estabelece a aparição dos mutantes como o ponto de mudança que progride a narrativa, mostrando que personagens como o Nick Fury, Demolidor, Doutor Estranho e até o Capitão América (vindo das colônias do Novo Mundo), terão que evoluir com essa mudança. E aqui tem um outro paralelo com a história do teatro.

X-Men 1602

É por volta do ano de 1602 que William Shakespeare e outros dramaturgos começam a consolidar o que mais tarde ficou conhecido como Teatro Barroco. Um palco separado da platéia com inovações técnicas que permitiam efeitos de luz e som (que daria origem ao desenho arquitetonico do Teatro Italiano e da Ópera), e histórias trágicas e amargas que exploravam mais a complexidade dos sentimentos humanos do que a simplicidade cômica dos personagens caricatos. Foi depois desse momento que o bardo inglês escreveu peças como Otelo, Macbeth e Rei Lear, se afastando das comédias de erros e os dramas históricos que marcaram sua primeira fase como dramaturgo.

Quando Gaiman estabelece 1602 como o ano em que os mutantes aparecem para o mundo, ele sugere (na minha leitura, pelo menos) que depois dos X-Men a Commedia dell’Arte dos primeiros anos da Marvel sofre uma mudança profunda. O universo em que coabitam aqueles personagens fica muito mais complexo e as histórias passam a abordar questões maiores, para além da piada fácil e do final sem muitas consequências do texto de Stan Lee.

O escritor Douglas Wolk, que escreveu o livro  All of the Marvels depois de anos lendo as 27.000 edições regulares já publicadas pela editora, dividiu em fases os temas principais que são comuns à maior parte das histórias dos diferentes personagens. Ele indica uma primeira fase de apresentação (de 1962 à 1968), seguida por uma segunda fase (de 1968 à 1980) onde aparecem as consequências boas e más dos principais conflitos das narrativas. É nessa fase que os X-Men se consolidam e se transformam num dos títulos principais da Marvel.

All of the Marvels Wolk

É obvio que essa comparação entre histórias em quadrinhos de super-heróis e a história do teatro é uma aproximação. A DC Comics tem personagens e histórias que estão muito mais para a Commedia dell”Arte e para o Teatro Barroco, assim como a Marvel às vezes introduz personagens que são como deuses. Mas existe uma progressão cronológica na história do teatro e na história das super-aventuras que é similar e esse tipo de comparação é sempre divertido.

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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Uma resposta para O Teatro Grego da DC e a Commedia dell’Arte da Marvel

  1. Gabriel Mattos disse:

    Bela percepção. É muito interessante saber esses elementos das origens desses personagens consolidados. Uma coisa que percebi pesquisando (essa matéria me fez pesquisar bastante) é que Pierrot/Pedrolino derivam de Pierre/Pietro/Pedro/Peter, como o Peter Parker, o que casa perfeitamente.

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